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Os Precursores de Vasco da Gama
«Quando as sombras da Idade Média começavam a tingir-se com os primeiros
arrebais do Renascimento, duas inspirações e dois anseios agitavam o espírito
europeu, já porventura fatigado da sua vida interior e doméstica, já presago da
multiforme e dilatada civilização, que ao pleno despertar da inteligência
haveria de converter a velha Europa em luzeiro de toda a humanidade e em soberana
região do globo inteiro. Anelava por sair da gleba conhecida e da própria quadra
em que vivia. Era como que uma forçosa necessidade do seu novo organismo
espiritual o romper as fronteiras, que a cingiam, e arremessar-se aventureira
pelo espaço e pelo tempo, inquirindo e perscrutando as paragens mais remotas e
as eras já passadas. O problema, que lhe incendiara a fantasia e a razão, era o
de conhecer e contemplar o género humano em toda a sua completa evolução e
unidade, ligando o preterido com o presente, e o de alargar os lindes geográficos,
vinculando à terra conhecida ignotas ou mal sonhadas regiões.
Não estivera de todo amortecida durante os séculos medievos a curiosidade
nos espíritos mais lúcidos e nos engenhos de eleição.
Quando as trevas da barbárie primitiva se foram adelgaçando, os grandes
monumentos do pensar antigo e clássico se iam deixando entrever e admirar,
envoltos em neblina de vago misticismo. Atou-se, como era dado em tempos tão escassos,
a tradição das grandiosas civilizações, que tinham meneado antigamente o ceptro
do universo. Deletreou-se nos gregos e romanos escritores o que haviam
registrado em suas obras acerca da terra e da natureza, vagamente delineada e
conhecida. Floresceram, a uma parte, as escolas, onde espíritos de quilates tão
subidos, como Roger Bacon, e S. Tomás, e Alberto Magno, e Vicente Bellovacense,
e Brunetto Latini, enlaçavam as doutrinas da antiguidade às suas próprias
fantasias. Principiavam, a outra parte, as viagens e aventuras àquelas longínquas
e cobiçadas regiões, de que o antigos haviam deixado o rasto nebuloso em seus escritos.
Temerários aventureiros, como o veneziano Marco Pólo, o inglês João de
Mandeville, o francês Guilherme de Rubruquis, haviam já levantado uma ponta
sequer do espesso véu, que trazia encobertas e defesas à curiosidade egoísta de
europeus aquelas terras, as quais a imaginação se comprazia em debuxar e
colorir de mil encantadas maravilhas.
Os laços porém, que vinculavam ao mundo conhecido as terras orientais e
africanas, eram ainda tão frouxos, tão incertos, tão entretecidos de fábula e
conjectura, que até o fecundo alvorecer do Renascimento se podia haver como perdida
para o saber e o comércio dos europeus a máxima porção do globo inteiro.
As terrestres e raras excursões, que poucos viajantes curiosos haviam
empreendido, chegando a1guns, como Marco Pólo, até aos últimos confins do
Oriente, eram empresas isoladas sem nexo, nem sistema. Ficariam totalmente
infrutuosas, se por outros caminhos mais asados e com maior perseverança e
sucessão os ousados navegantes do ocidente não houvessem traçado com a proa das
suas caravelas e baixéis, por mares virgens de lenho e férteis em tormentas, a
estrada real à nova e prodigiosa comunicação dos povos mais distantes e às rápidas
conquistas da ciência.
Durante a Idade Média, se fizermos excepção deste efémero
delírio das cruzadas, a Europa viverá adormecida para toda a inquirição
experimental acerca da natureza e das terras, que demoravam para a1ém dos seus
limites estreitíssimos. Quando os primeiros clarões da antiguidade começaram de
novo a divisar-se por entre frinchas mal abertas, quando os sábios e pensadores
puderam ter à mão, incorrectos e mal interpretados, os monumentos da ciência greco-romana,
o espírito da Europa julgou que mais nada podia caber no engenho humano, senão
o que os antigos haviam legado em seus tesouros de ciência erudição. A natureza
parecia que fielmente se espelhava nos tratados de Aristóteles. A cosmografia
estava irrevogavelmente delineada nos ditames de Hiparco e Ptolemeu. A medicina
estava soberana e indefectivelmente legislada nas obras de Galeno e nos árabes comentadores,
cujo principado coubera a Avicena. O universo tivera como que a segunda criação
no espírito omnividente do grande stagirita. A terra, com os seus mares e
continentes e arquipélagos, receberá a sua forma e a sua repartição pelo ditado
irrefragável dos geógrafos alexandrinos». In Latino Coelho, 1882, Vasco da Gama, Bertrand Editora, Lisboa 2007,
ISBN 978-972-25-1614-3.
Cortesia de Bertrand Editora/JDACT