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In Memoriam de MLAC
A Mocidade de D. João V
Todos falam, e poucos entendem
«Faltavam vinte minutos para
a uma hora da tarde, hora improrrogável marcada por Lourenço Telles aos comensais
que tinha convidado. O erudito saía do seu quarto, viçoso como a Primavera, menos
na frescura do rosto, cujas rugas contumazes pareciam o eterno cartaz dos anos.
A preciosa renda dos punhos e da tira nada tinha a invejar na alva finura ás riquíssimas
valencianas das duquesas do grande século. Os bordados e recamos da vestia de cetim
azul celeste podiam sair do bastidor em que se lavraram os ramos de flores com que
se enfeitou, em gala real, o peito de Luiz XIV, quando no orgulho de mancebo e de
monarca escolhia o sol para divisa do seu esplendor. O feitio francês, a elegância
do corte e da costura, a profusão das jóias e a magnificência do estofo, faziam
de Lourenço Telles o réu de lesa-pragmática mais público e impenitente, não havendo
um só artigo das severas leis económicas de Pedro II, que o seu trajo não deixasse
de infringir.
Encontrando-o, Vattean dar-lhe-ia
a imortalidade do seu pincel espirituoso. As damas mais caprichosas teriam de confessar
com dor a primazia das essências usadas por ele nas roupas e no penteado. Frisada
em canudos simétricos, a cabeleira, com as bolsas apanhadas em nós de fita cor de
rosa, chamados laços de amor, caía com artificiosa graça, lambendo a testa, e acompanhando
as faces.
Os sinetes de rubis dos dois
relógios, os botões de brilhantes dos punhos, e a espiguilha admirável da gravata,
fariam empalidecer de inveja qualquer dos fidalgos moços e presumidos da roda do
príncipe real. Finalmente o espadim de copos cravejados e bainha de veludo
bordado, apresentava uma folha de Toledo, que o capitão Jerónimo quereria ver montada
com menos riqueza, e mais segurança, achando-a capaz de defender o coração de um
soldado.
Apenas chegou ao escritório,
revestido das maneiras corteses da escola de outro tempo, o comendador deu com os
olhos no abade Silva, de pé, em hábitos maiores, entretido a folhear um livro, sem
se esquecer de extasiar os olhos na ocasião própria. Regulando-se pelo exemplo do
seu douto amigo, o autor das façanhas de Viriato não omitira uma só das
preciosidades do guarda-roupa ou museu doméstico. Era uma verdadeira tabuleta de
antiguidades. A meia de seda preta mostrava um lavor aberto, que mal interceptava
o roxo claro da segunda meia unida á pele. O calção, laçado por cima do joelho e
recamado nas costuras, estava tão justo, que deixava recear algum desastre. Nas
fivelas dos sapatos brilhavam pedras de valor. À volta do pescoço formava um arabesco
serpentino; os cinco sinetes pendentes de esdrúxulas cadeias assemelhavam-se ás
numerosas correntes de um lampadário. Curta e de requifes, a capa ouriçada de folhos
na murça, com guarnições de vidrilhos pretos, dava-lhe a aparência suspeita de um
toureador castelhano. Sobre tudo a prodigalidade de estupendos camafeus que
semeara com ostentação, e os desusados anéis romanos, egípcios ou hebreus que
metera em todos os dedos, compunham uma panóplia singular dentro da qual esticava
comprimido, mas sempre solene, sentencioso e engomado, o delicioso inventor do livro
dos pavões!
Os dois eruditos, admirando-se,
mal puderam conter o riso contagioso. O abade achando na idade de Lourenço Telles
a sátira das suas incorrigíveis elegâncias; o comendador colhendo em flagrante sob
a cor de lagosta das segundas meias, e o quase escândalo dos calções funis, a tíbia
aflautada e a coxa diminuta do venerando crítico. O tio de Filipe da Gama, à parte
a justa modéstia, reputando-se menos seco e muito mais vistoso, dava interiormente
a si mesmo os parabéns por conservar todas as suas perfeições, opróbrio do Aristarco
eclesiástico!
Jasmin, seguindo seu amo, tomou conta do tricórnio de borlas verdes e torçal
de ouro do comendador das barbas históricas, recebendo ao mesmo tempo de suas mãos
uma bengala, cujo castão raríssimo (dizia ele) não conhecia rival em toda a Europa,
sendo a autêntica e vera taça egípcia em que a formosa Cleópatra bebera as pérolas
desfeitas no banquete de Marco António. Na realidade o feitio não desmentia a
versão. O que quer que era, que o abade chamava taça, tinha uma tampa de lavores,
e abrindo -se patenteava certa cavidade, aonde o latinista incrédulo observou
que se poderiam acomodar até seis pastilhas contra a tosse. O peso e as dimensões
deste monumento mais o classificavam entre as clavas ou maçãs de armas, do que entre
os canónicos e pacíficos bastões de uma coluna da igreja doutoral (8)». In A Mocidade
de D. João V, Luís Augusto Rebello da Silva, Obras Completas, PQ 9261, R4M58,
1907, Volume 4, Library University Of Toronto, Setembro 1967, Empresa da
História de Portugal, Livraria Moderna, 1907.
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