terça-feira, 15 de maio de 2012

Antero ou a Noite Intacta. Eduardo Lourenço. «Sem dúvida, nós sabíamos todos que a atitude de Antero em relação à problemática geral da sua época não tinha sido simples, nem ficado ao abrigo de toda a controvérsia. Mas as vicissitudes da sua aventura literária, juntas às da sua vida, […] desejaríamos clara e nítida do seu militantismo socialista, exemplar e inovador»



Cortesia de wikipedia e jdact

Antero ou o socialismo como utopia
«O estatuto ético do autor dos “Sonetos” torna delicada a tarefa de situar ‘objectivamente’, quer dizer, em termos sociopolíticos, a sua condição de socialista. O que ouvimos esta manhã leva a crer que num futuro próximo e sob esse ponto capital tenhamos de modificar um pouco a sua imagem de Bayard, ‘sans peur et sans reproche’ do socialismo português nascente.
Sem dúvida, nós sabíamos todos que a atitude de Antero em relação à problemática geral da sua época não tinha sido simples, nem ficado ao abrigo de toda a controvérsia. Mas as vicissitudes da sua aventura literária, juntas às da sua vida, cedo tocada pela sombra de uma doença misteriosa, baralham do interior a paisagem que desejaríamos clara e nítida do seu militantismo socialista, exemplar e inovador. Embora permanecendo para sempre a mais significativa referência cultural da nossa idade heróica em matéria de socialismo, Antero não escapou aos dilaceramentos de ordem teórica, nem às peripécias obscuras, algumas dolorosas, de acção militante, ainda incipiente, do combate operário em Portugal a partir dos anos 70. Tanto no que lhe diz respeito, como no que diz respeito aos seus camaradas de acção, devemos, sobretudo, evitar imaginá-los e julgá-los na luz posterior da experiência socialista, sem cessar revista e corrigida por uma história de que não conhecemos, nós mesmos, a infalível sentença.
Antero de Quental, apóstolo do socialismo? Sem dúvida!
Mas de que visão do socialismo e de que encarnação prática? Proudhon? Sem dúvida, também, mas igualmente de outras fontes, dividido, partilhado como o foi desde a juventude por todas as ideias capitais do seu tempo e preocupado, acima de tudo, com interrogações que relevam mais da ordem filosófica ou religiosa que do domínio propriamente “político ou social”. Aliás, é justamente por isso que o socialismo de Antero não se reduzirá nunca à afirmação e defesa de um ideal generoso de justiça social, como era o dos seus companheiros. O seu socialismo é ‘visão do mundo’ e o seu entusiasmo pela ‘nova ideia’ não se pode confinar no domínio de uma acção militante sem referências metafísicas e consequências de ordem transitória. Para Antero, a ideia nova, o socialismo como Revolução dos tempos modernos, como o Cristianismo fora a do mundo antigo, é antes de tudo o triunfo da Ideia, isto é, a assunção de um sentido absoluto do destino histórico da humanidade em termos de Consciência. Ou, melhor ainda, de autoconsciencialização. Concebido e vivido com fervor, o seu ideal de juventude, sob os manes de Hegel adaptado por Proudhon, devia em breve, pelo menos ao nível da experiência humilde e decepcionante das lutas reais do proletariado nacional, ainda preso às suas origens rurais, confrontar-se com o rude desmentido da História. Entre o homem de acção, ou antes, do agitador de ideias de carácter ‘revolucionário’, e o homem de pensamento, abre-se cedo um espaço de conflito, no mesmo tempo moral e ideológico, que o implica na sua totalidade espiritual.
Pela seriedade e gravidade com que Antero confrontou as exigências do seu ideal socialista sob o signo da Justiça, concebida à maneira de Proudhon como o farol da História, e as de um pensamento trágico, incapaz de acreditar num sentido positivo da Existência, o seu combate espiritual constitui um acontecimento sem precedentes na nossa Cultura. A bem dizer, marca o início da Modernidade entre nós, se admitirmos que essa Modernidade se acompanha de uma tomada de consciência histórica de carácter trágico. Sobre todos os planos, salvo o da escrita poética, a aventura intelectual de Antero instaura entre nós uma experiência de ruptura cultural, tanto mais virulenta quanto é mais tardia em relação a todas quantas o Ocidente europeu conhecera desde Lutero. A justo título, a consciência cultural tradicional, que ultrapassa largamente a chamada ‘tradicionalista’ sentiu-se ameaçada nas suas raízes e reagiu em consequência, condenando o homem que era o símbolo vivo dessa ruptura a uma espécie nova de solidão espiritual, que foi também social e histórica, muito pior que qualquer castigo visível». In Eduardo Lourenço, Antero ou a Noite Intacta, Gradiva, 2007, ISBN 978-989-616-181-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT