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Antero ou o socialismo como utopia
«O estatuto ético do autor dos “Sonetos” torna delicada a tarefa de
situar ‘objectivamente’, quer dizer, em termos sociopolíticos, a sua condição
de socialista. O que ouvimos esta manhã leva a crer que num futuro próximo e
sob esse ponto capital tenhamos de modificar um pouco a sua imagem de Bayard, ‘sans
peur et sans reproche’ do socialismo português nascente.
Sem dúvida, nós sabíamos todos que a atitude de Antero em relação à
problemática geral da sua época não tinha sido simples, nem ficado ao abrigo de
toda a controvérsia. Mas as vicissitudes da sua aventura literária, juntas às da
sua vida, cedo tocada pela sombra de uma doença misteriosa, baralham do
interior a paisagem que desejaríamos clara e nítida do seu militantismo
socialista, exemplar e inovador. Embora permanecendo para sempre a mais
significativa referência cultural da nossa idade heróica em matéria de
socialismo, Antero não escapou aos dilaceramentos de ordem teórica, nem às
peripécias obscuras, algumas dolorosas, de acção militante, ainda incipiente,
do combate operário em Portugal a partir dos anos 70. Tanto no que lhe diz
respeito, como no que diz respeito aos seus camaradas de acção, devemos, sobretudo,
evitar imaginá-los e julgá-los na luz posterior da experiência socialista, sem
cessar revista e corrigida por uma história de que não conhecemos, nós mesmos,
a infalível sentença.
Antero de Quental, apóstolo do socialismo? Sem dúvida!
Mas de que visão do socialismo e de que encarnação prática? Proudhon?
Sem dúvida, também, mas igualmente de outras fontes, dividido, partilhado como
o foi desde a juventude por todas as ideias capitais do seu tempo e preocupado,
acima de tudo, com interrogações que relevam mais da ordem filosófica ou
religiosa que do domínio propriamente “político ou social”. Aliás, é justamente
por isso que o socialismo de Antero não se reduzirá nunca à afirmação e defesa
de um ideal generoso de justiça social, como era o dos seus companheiros. O seu
socialismo é ‘visão do mundo’ e o seu entusiasmo pela ‘nova ideia’ não se pode
confinar no domínio de uma acção militante sem referências metafísicas e
consequências de ordem transitória. Para Antero, a ideia nova, o socialismo
como Revolução dos tempos modernos, como o Cristianismo fora a do mundo antigo,
é antes de tudo o triunfo da Ideia, isto é, a assunção de um sentido absoluto
do destino histórico da humanidade em termos de Consciência. Ou, melhor ainda,
de autoconsciencialização. Concebido e vivido com fervor, o seu ideal de juventude,
sob os manes de Hegel adaptado por Proudhon, devia em breve, pelo menos ao
nível da experiência humilde e decepcionante das lutas reais do proletariado nacional,
ainda preso às suas origens rurais, confrontar-se com o rude desmentido da
História. Entre o homem de acção, ou antes, do agitador de ideias de carácter ‘revolucionário’,
e o homem de pensamento, abre-se cedo um espaço de conflito, no mesmo tempo
moral e ideológico, que o implica na sua totalidade espiritual.
Pela seriedade e gravidade com que Antero confrontou as exigências do
seu ideal socialista sob o signo da Justiça, concebida à maneira de Proudhon
como o farol da História, e as de um pensamento trágico, incapaz de acreditar
num sentido positivo da Existência, o seu combate espiritual constitui um
acontecimento sem precedentes na nossa Cultura. A bem dizer, marca o início da Modernidade
entre nós, se admitirmos que essa Modernidade se acompanha de uma tomada de
consciência histórica de carácter trágico. Sobre todos os planos, salvo o da
escrita poética, a aventura intelectual de Antero instaura entre nós uma
experiência de ruptura cultural, tanto mais virulenta quanto é mais tardia em relação
a todas quantas o Ocidente europeu conhecera desde Lutero. A justo título, a
consciência cultural tradicional, que ultrapassa largamente a chamada ‘tradicionalista’
sentiu-se ameaçada nas suas raízes e reagiu em consequência, condenando o homem
que era o símbolo vivo dessa ruptura a uma espécie nova de solidão espiritual,
que foi também social e histórica, muito pior que qualquer castigo visível». In
Eduardo Lourenço, Antero ou a Noite Intacta, Gradiva, 2007, ISBN
978-989-616-181-1.
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