sábado, 12 de maio de 2012

Elogio da Loucura. Erasmo. «Aplicava-se o zelo deles a celebrar o encómio de deuses e de heróis. Ouvireis pois, um encómio, não de Hércules nem Sólon, mas de mim própria, da Estultícia. Fui, para vós, uma Primavera. Tal como após o Inverno áspero surge o formoso sol que devolve à terra o rosto dourado»



Cortesia de wikipedia e jdact

Fala a Loucura
«Os vulgares mortais dizem mal de mim; mas não sou tão néscia como os estultíssimos me julgam, pois ninguém é capaz como eu de divertir tanto os homens e até os deuses. A prova é que, mal me apresentei a este grande auditório, já nos vossos olhos brilha uma insólita alegria. Repentinamente os vossos rostos se dirigiram para mim, e o vosso amável riso me aplaudiu com delícia. Vejo-vos inebriados pelo néctar dos deuses homéricos, misturado com um pouco de nefente que dissolve os cuidados, e ainda há pouco estáveis tão sombrios e tristes que mais parecíeis ter fugido do antro de Trofónius.
Fui, para vós, uma Primavera. Tal como após o Inverno áspero surge o formoso sol que devolve à terra o rosto dourado, e reverdece toda a natura com outra mocidade, assim se transformou, logo que me vou, o vosso vulto triste. Com a minha aparição logo obtive o que os bons oradores não conseguem pelos longos discursos meditativos; expulsar das almas o tédio vil.
A razão porque me revesti hoje de aspecto tão insólito ireis sabê-la se me quiserdes ouvir, não com a atenção que prestais aos sermões piedosos, mas com a que logo se excita na presença dos charlatães, dos bobos, e dos saltimbancos; ou melhor, com as orelhas arrebitadas, como outrora o nosso amigo Midas escutava a música do deus Pan.
Praz-me agir diante de vós como um sofista, não daqueles que inculcam à mocidade bagatelas enfadonhas e que lhe ensinam a discutir de modo mais pertinaz do que o das mulheres; imitarei aqueles antigos que, para evitarem a denominação infame de sábios, escolheram a de sofistas. Aplicava-se o zelo deles a celebrar o encómio de deuses e de heróis. Ouvireis pois, um encómio, não de Hércules nem Sólon, mas de mim própria, da Estultícia.

Não considero sapientes aqueles que julgam estultíssimo o elogio próprio. Se isto é estulto, é o que me convém. Nada quadra tão bem à Moria como soprar na trombeta da fama e auto elogiar-se. Quem é que pode exprimir-se melhor do que eu própria? Creio que demonstro assim maior modéstia do que o poderoso ou o douto que, por perversão do pudor, suborna a lisonja de um orador ou a fantasia de um poeta, e paga para ouvir louvores, ou seja, puras mentiras. Mas o nosso homem vai-se pavoneando, vai levantando a crista, enquanto os aduladores impudicos comparam com os deuses aquela nulidade, apresentam-no, convencidos do contrário, como o modelo perfeito de todas as virtudes, enfeitam uma gralha com penas de pavão, fazendo do preto branco, transformam uma mosca num elefante. Finalmente, seguindo mais uma vez um dito popular, declaro que ‘já que ninguém me gaba, gabo-me eu a mim própria’.
Não sei que mais me espanta nos mortais, se a ingratidão, se a indiferença. Todos me desejam, todos gozam dos meus favores, mas nenhum, no decurso dos séculos testemunhou a sua gratidão com um discurso em louvor da Loucura, quando tantos perderam a paz do sono e o azeite da candeia a escrever louvores a tiranos como Busiris e Falaris, à febre, às moscas, à calvície e outras pestes. O meu encómio, que ides ouvir, é extemporâneo e improvisado, mas por isso mesmo muito mais sincero». In Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, tradução de Álvaro Ribeiro, colecção Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1987.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT