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Désir ou o Canto do Cisne
«Quando em Julho de 1433, depois de prever a sua morre e de ter piorado
consideravelmente em Alcochete, lugar onde mais tarde lhe morrerá um outro
filho que foi o Condestável, João veio para Lisboa, o Rei João o Primeiro, já
viúvo de longa data de D. Filipa de Lencastre, sua estimada e respeitada
mulher, associara havia muito ao governo do Reino Duarte, o filho primogénito,
portanto habituado desde cedo aos trabalhos da administração e às agruras do
serviço de Estado. Duarte, do ponto de vista mental, não se achava preparado, apesar
de tudo isso, para o cargo, pois as suas íntimas necessidades espirituais, os
seus doentios e confusos humores, a sua atribulada consciência, os seus receios
de mal reinar, as suas prementes dúvidas, faziam do monarca um homem, embora de
boa índole, honesto e em princípio bem preparado para a chefia, inseguro,
receoso, insatisfeito, sempre partido entre controversas opções, pusilânime e
triste. Quando o pai morreu, morreu no seu legítimo herdeiro também alguma
coisa da firmeza indispensável ao domínio e direcção das rédeas do Estado, embora
nos curtos anos de governo tivesse actuado em alguns processos até com inusitada
inflexibilidade, como sucedeu com as leis sobre os seus judeus, fugindo aí da
peculiar tolerância e do bom senso das disposições tomadas ao longo do reinado
de seu pai.
O irmão Pedro não esteve presente, nem na hora da morte nem nas
exéquias do pai e, o que não deixaria de ser estranho se o véu da discrição não
cobrisse sabiamente o facto, prestou homenagem ao irmão a sós, em Sintra e,
logo que o velho Rei de boa memória morreu, escreveu uma longa carta de
conselhos ao novo Rei. Não sei se o fez por considerá-lo inapto para a
governança, como alguns querem traduzir, se o fez porque apenas pretendia dar o
seu contributo de homem experiente, politicamente maduro, ao bom irmão sempre
debruçado sobre as ocultas intempéries da sua alma ferida e insatisfeita...
A coroação de Duarte foi concretizada sob auspícios negativos. Isso eu
sei. Não há ainda muito tempo me passou pelas mãos, em papéis e pergaminhos de
mestre Abraão Guedelha, essa leitura astrológica. Mestre Abraão acertou. Mestre
Guedelha pediu ao Rei que adiasse a coroação pois o Sol achava-se em recessão.
Duarte não aceitou e respondeu que, como bom cristão, confiava na bondade do
Senhor e não em crenças pagãs. Fez mal. Se os antigos Imperadores e Papas
acreditaram nelas, e a matemática dos astros até pôde auxiliar a medicina,
porque não adiar por umas horas o momento de cingir uma coroa que, só por isso,
se pode tornar uma promessa de espinhos e agonias? Como aconteceu.
D. Duarte não teve Deus por ele, pobre homem, e o seu governo foi-lhe
uma permanente provação. Há quem diga que o seu desamor aos Judeus se deveria
também a esse prognóstico de mestre Guedelha.
Talvez, mas é provável que, se assim foi, o facto se tenha devido mais à
influência da Rainha que ele adorava, que à má vontade do Rei que não era de
índole perversa, antes pelo contrário, embora devamos recear sempre mais os
fracos que os fortes. São em geral mais perigosos.
Os irmãos do Rei prosseguiram as suas vidas. Um em Coimbra, Pedro, o
outro, Henrique, mestre da Ordem de Cristo, a administrar os bens dele e da
Ordem. O pai, no ano da morte, doara-lhe as Ilhas de Porto Santo, Madeira e
Desertas e concedera-lhe ainda o privilégio da pesca do atum e outras pescarias
nos mares do Algarve.
Entretanto nascera um herdeiro a Duarte, infante Afonso, que viu a luz
em Sintra, a 15 de Janeiro do ano anterior, sob o signo de Capricórnio». In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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