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“Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a
postura, mesmo, que tinha de tomar era simbólica. Tinha de se curvar, de se
baixar para cometer a ignomínia de se ver. … Serei sempre da rua dos Douradores
como a humanidade inteira”. In Livro do Desassossego.
«Custa-me imaginar que alguém possa um dia falar melhor de Fernando
Pessoa que ele mesmo. Pela simples razão de que foi Pessoa quem descobriu o
modo de falar de si tomando-se sempre por um outro. E como os deuses lhe
concederam um olhar imparcial como a neve, o retrato que nos devolve do fundo
do seu próprio espelho brilha no escuro como uma lâmina. Quando encarnada em
figuras que parecem vivas, e ele supunha mais vivas do que ele, essa descoberta
de si como outro, convertida em jogo da sua verdade, chamou-se “Heteronímia”.
Talvez nada melhor que esta palavra abstrusa de sua invenção, tornada hoje
quase popular, indique a que ponto um dos mais estranhos espíritos do século XX
se converteu num “mito”. Não me vou prestar ao ridículo de esclarecer o que é um mito depois de
o mesmo Pessoa ter configurado da sua essência a versão exacta:
O mito é o nada que é tudo.
……………………………
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
Mito, vida que não passa na vida que passa, e toda passa, lenda a
escorrer da realidade. Foi para Ulisses, encarnação da primeira viagem iniciática
da nossa alma futuramente grega, como ele a sonhava, que o autor de “Mensagem”
compôs os versos famosos. Não menos mágica é, para nós, a aventura daquele que
era, por fora e para os outros, Fernando Pessoa e que por dentro não tinha nome
próprio, como todos nós. Só que ele o sabia e nós menos do que ele. Como
Ulisses, sem para si existir nos bastou. Por não ter sido foi vindo e nos
criou, tais que já não podemos contemplar o céu da nossa cultura sem o ver a
ele no centro, convertido em ‘mito brilhante e mudo’, irradiando a sua luz
enigmática.
Há cinquenta anos essa mesma luz era invisível ou obscura. Hoje é mais
que visível e, aparentemente, clara. Se há enigma é o da sua universal
claridade. Por detrás dela não é difícil descortinar o sorriso de Pessoa,
gozando a sós, como escreveu, ‘a ironia de o não estranharem’.
Com efeito, que alquimia converteu uma poesia, à primeira vista, e
sobretudo, à segunda, pouco acessível, espelho sem reflexo dos jogos infinitos
da emoção e da inteligência dela, em música íntima, em solilóquio obsessivo da
nossa cultura? Porquê nos passamos a toda a largura da rua com os bolsos atulhados
de frases de Pessoa? Porquê os seus poemas, os seus pensamentos, os seus paradoxos,
a sua múltipla leitura do universo e da vida se tornou a matriz e o código, não
apenas dos nossos sonhos mais raros, como da prosa triste da realidade? Em
suma: como e porquê, Pessoa se converteu num mito?
Ofuscadas por uma presença tão soberana, várias vozes, algumas de naturais
candidatos à sua sucessão, se têm insurgido contra esta confiscação da nossa
vida cultural pelo mito-Pessoa. Em vão. Como outros povos, também nós gostamos
de reis. Sobretudo, mortos. Fernando Pessoa, rei de si mesmo como poucos o
foram, se é ser rei existir e sonhar, sentado num trono de melancolia, também gostava
de ‘reis’, meteóricos como Sidónio Pais ou loucos como o seu muito amado e
fraterno Luís da Baviera. Do horripilante ‘objecto-fetiche’ em que o desejamos
converter, decerto gostaria menos. Ele suspeitaria que o incenso que o dilui é
menos o fruto de uma conivência de propósitos e sonhos, que o milagre às
avessas de uma devoção aos deuses que ele recusou. Como pôde um Poeta que
subverteu os fundamentos do nosso moderno lirismo efusivo e sentimental, o
nosso coração a tiracolo, o nosso heroísmo de encomenda por conta de Camões, a nossa
vida toda em diminutivos, ter-se convertido no ídolo que agora tem o seu nome?
Diante de tanta e tão suspeita idolatria, um dos nossos mais conhecidos
críticos sugeriu, em tempos, uma aproximação entre os destinos de Pessoa e de
Guerra Junqueiro. Maneira graciosa de sugerir que a fama do primeiro não duraria
mais que a do segundo. Nada mais arbitrário. Pessoa nunca foi e creio que nunca
poderá ser bandeira poética de uma ideologia determinada, eco sonoro de
combates políticos ou culturais de real importância mas sem mais alcance e
fundura que a do tempo e da maneira que os formulava. A fama extraordinária de
que Junqueiro gozou em vida não tinha muito a ver com a espécie de combate de
que a poesia é o lugar e o signo». In Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, Rei da
Nossa Baviera, Gradiva, 2008, ISBN 978-989-616-242-9.
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