sexta-feira, 11 de maio de 2012

César de Frias. A Afronta a António Nobre. Parte VII. «Em Coimbra, os lentes reprovaram-no dois anos e os condiscípulos regozijaram-se sem rebuço com estes seus desastres nos estudos oficiais. Teve de desertar e ir fazer o curso a Paris, E foi sempre assim, enquanto em vida, por toda a parte onde passou. Queriam ajustá-lo à craveira vulgar, Excedia-a?»


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O Poeta do SÓ
«A ciência trazia então como escopo despir a vida de todos os altos atributos que a poesia e a religião lhe haviam emprestado. Ficava um ermo a existência. O homem reduzia-se à proporção do bípede vulgar, descendente do símio. Murchavam ao seu hálito os hortos do sonho. Secavam-se as fontes e mirravam-se os pomos da idealidade, e não mais, portanto, as almas insatisfeitas teriam onde mitigar suas fomes e sedes.
E, então, a de Anto, que pela sua condição de “excepcional”, mais sôfregas e ardentes sentia essa fome e essa sede de ideal, como poderia subsistir doravante? Se os seus pulmões se não tivessem tão cedo, ou mesmo nunca, desfeito em sangue, é possível, lógico mesmo, que a sua “maneira” tivesse evoluído, afastando-se dos extremismos subjectivistas, fatais no primeiro ciclo de todos os Artistas, ascendendo a uma objectividade mais serena e desentranhando, assim, do seu estro potente e magnífico mais dois ou três volumes de belos poemetos. Teria deste modo deixado completo o seu lindo poema “O Desejado”, tão imbuído de sentido pátrio. Mas isso não bastaria para o acorrentar, resignadamente, à vida coeva, chan e baça. A imperfeição das coisas e dos seres postos à sua beira, num contacto forçado e quotidiano, imperfeição inconvertível ao influxo da sua vontade, imperfeição tornada orgânica e fixa, e que, para mais, não só lhe afrontava a sensibilidade delicada, como até lhe penetrava o espírito, contagiando-o da sua fealdade, manchando-o, apoucando-o, havia sem dúvida de lhe desenrolar o cruel dilema: ou se integrava na vida mesquinha, amesquinhando-se, é bem de ver, ou seria impiedosamente triturado na sua bárbara engrenagem. E não será de presumir antes a sua intransigência de que a sua rendição? Acrescente-se a estes motivos de desgosto pela existência ainda uma outra condição, também fatal na maioria dos verdadeiros Artistas. O aparecimento de antimonias, umas vezes entre a sua saúde e a sua ânsia de correr aventuras, esta forte, aquela débil, outras vezes, as mais, entre o espírito suave e cheio de requintes que lhes abala o peito e a sociedade em que o seu destino os põe a viver. E começa então, feroz, despedaçadoramente, o pleito entre os contendores, pleito que finda sempre pela derrota sangrenta dos Artistas, que na sua especial natureza de ser encontram, não um auxiliar, mas sim um inimigo mais a corroer-lhes o aço das suas cotas de armas, pouco a pouco rendendo os inermes e exaustos à truculência do inimigo externo. Esteve António Nobre sujeito a esta condição, todos o sabem. Paradoxalmente, mesmo os da sua roda, literatos como ele, que se sentiam atrair irresistivelmente pela originalidade do seu talento, não deixavam de acidular com despeito e inveja a sua admiração.
Em Coimbra, os lentes reprovaram-no dois anos e os condiscípulos regozijaram-se sem rebuço com estes seus desastres nos estudos oficiais.
Teve de desertar e ir fazer o curso a Paris, E foi sempre assim, enquanto em vida, por toda a parte onde passou. Queriam ajustá-lo à craveira vulgar, Excedia-a? Apedrejavam-no. Faziam-lhe pagar caro o prestígio do seu estro, o encanto que de si emanava, o poder pessoal de que impregnava todos à volta.
Por isso, ainda os que mais ou menos com ele tinham afinidades, não hesitaram em bandear-se com o vulgo, para a vingativa conjura. Sabendo-o ávido de companhias reverentes, afastaram-se dele, fizeram-lhe em torno o vácuo e o silêncio, no intento criminoso de o matarem à míngua desse sagrado pão que era indispensável à sua alma a simpatia. E conseguiram-no.
Couraçava-o ferreamente o orgulho, mas a violência dos ataques excedia a fortaleza da couraça. Num dado momento sentiu-se perdido, derrotado, sem um arrimo sequer, louco
Sebastião batalhando entre a chusma de infiéis, apenas seguido do seu agoirento aio, o tédio.
Nem uma das suas quimeras soubera persistir em acompanhá-lo até a morte, denodadamente. Transidas de cobardia, deixaram-no, a distância bastante da linha de batalha. E quase o viram cair, trespassado, exangue, sem soltarem piedosamente um grito, um ai, um soluço. Até o Amor, o condestável dos Poetas, se rendeu bem cedo. Culpa de Anto? Talvez. Quis demais.
Debruçou sempre a sua alma nos olhos das mulheres com a mira de ver o céu, quando não é essa a paisagem, mas sim a da volúpia, para onde essas janelas encantadas olham “A Purinha”, essa miragem maravilhosamente linda, exprime bem o seu sonho romântico e errado de buscar anjos na terra, seres sobrenaturais com belezas célicas e virtudes de milagre. Por isso, o Amor, não lhe podendo ofertar o impossível, como a amizade, e como tudo o mais, o abandonou também. No ardor do combate, animou-o apenas o ritmo forte do coração dos simples, os pegureiros e pescadores da sua terra, em que, tal como no coração dos búzios, vago e distante, ressoa o marulhar das ondas largas, ele escutava a grita audaz e épica da raça lusíada de outrora.
Caiu por fim. O seu Alcácer-Quibir foi num leito de doença. A lançada que lhe trespassou o flanco, arremessou-lha a tísica. Reatando e repetindo: esta foi mera comparsa na tragédia.
Coube-lhe, por acaso, dizer a frase final. Desconsolado, traído, só, mesmo que a doença se lhe não tivesse enamorado dos pulmões, não morreria de velho. Mais dia, menos dia, roída a sua alma pela nevrose do talento, por essa outra incurável e galopante

Tysica de alma…

chegaria a hora turva em que o seu braço se ergueria à altura do peito ou da fronte, empunhando o revólver libertador, quebrando os grilhões que o jungiam ao mundo de misérias, descerrando-lhe em frente a Jerusalém eterna, onde habitava a sua feiticeira noiva, de sorriso imutável e de misterioso encanto». In César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa, PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.



(Continua)
Cortesia de Livraria Central Editores/JDACT