jdact, cortesia de laureanoribatua e armandapassos
«No corredor, pensei que tinha que orçar o tempo que me restava daquela
manhã, fadada para as saudações, quando, de repente, me confrontei com uma
placa identificadora da Repartição de Finanças. Sustive uns segundos, a ver no
pulso, o relógio e, a medo e com timidez, entrei. Havia um balcão corrido, mais
pequeno que o que tinha deixado atrás, momentos antes. Olhei, este era de
madeira mais grossa, de nervuras bem à vista, polidas pelos cotovelos e braços
dos que se sustinham ali, no cumprimento honroso dos seus deveres fiscais.
Estava um ror de gente, de dianteira a mim. Enquanto aguardava a minha vez, distraí-me
a ver se aqueles desenhos e aquelas elipses na madeira eram veios de cerne, de
pinho ou de castanho.
Logo que uma clareira se fez no balcão, a ele me cheguei, para ser visto
e notado pelos atendedores, que conversavam entre si, num cavaco desenfreado,
de sisas e prediais. Metido comigo e contido de implosão, ia acompanhando
aquele discurso tributário, contente de entender aquelas discussões técnicas,
de que eu tinha bom conhecimento. De repente, um daqueles fiscalistas,
estranhando a minha cara desconhecida, levantou-se, perguntando-me se eu
pretendia alguma coisa. Respondi que era o novo vizinho de baixo, do
rés-do-chão, que era o notário acabado de chegar e que queria apenas apresentar
cumprimentos aos vizinhos de cima, que eram eles, excelências. Levantaram-se
todos e, com o ar mais familiar e acolhedor do mundo, fui recebido. Os cumprimentos
multiplicaram-se e achei que ia ter, em cada um, um amigo.
Granjeado de simpatias e da honraria daqueles suaves e bem sabidos
respeitos, e daquele acolhimento de família, veio-me à mente o meu primo, chefe
de Finanças que foi, e que os meus pais educaram, como se fosse o meu irmão
mais velho e de quem me via ainda ao seu colo, onde muitas vezes adormecia.
Desci do primeiro andar, por uma escada larga em dois lanços, que desembocava
numa outra externa de granito, onde me deparei com um sol regaladamente
musical.
Tomada a posse, titulada juridicamente a minha actividade, dei comigo a
dar fé pública a um contrato de venda de uma parcela de terreno, que era um
destaque de uma courela que o vendedor dava, contra preço simbólico, ao
comprador, humilde no comportamento e na renda da jorna. Compadeci-me daquele
outorgante, tão orgulhoso daquela compra, tão contente daquela sua situação de
comprador, que me olhava com o ar de maior satisfação do mundo, a mim, notário
que lhe garantia o formal daquela escritura, a comprovar os papéis passados,
com que ele podia começar a construir a sua pequena cabana, como fervorosamente
me confessava.
Foi com muito esforço que tive de me atrever a apresentar-lhe o recibo
da conta daquele primeiro acto. Onde é que iria parar aquele entusiasmo
transbordante, quando eu lhe dissesse o custo daquela comprinha, pensei com os
meus botões.
O Garcia, matriciado já naquelas tarimbas, lá disse ao Tio Manuel que
agora tinha que pagar ao Estado aquela importância do recibo amarelo. Ao
contrário do que eu esperava, pacientemente, rapou da carteira abaulada que
trazia no bolso de trás das calças e entregou três papeletas de mil escudos,
recebendo de volta a demasia, isto é, o troco.
E, alegre e contente, descoberto do chapéu, solicitou com a sua mão
rude a minha, apertando-ma, com um vigor ainda hoje sentido.
Encontrava-o depois, de vez em quando, o que para mim era a lembrança
do primeiro trabalho no cartório. Haveria de, sempre, lhe dar uma atenção especial,
quando o via, à descida de Marvão, a caminho da sua casa, na Ranginha.
No fim da primeira manhã de trabalho, enderecei convite ao Garcia para
me acompanhar a Castelo de Vide, para lá arranjar alojamento, já que aquele era
demasiado escuro e atroado pelo relógio da torre. Não querendo ouvir o que eu
estava a dizer, chamou-me à atenção que era uma ofensa que eu ia fazer a
Marvão, alegando que, entre as duas Vilas vizinhas, nunca tinha havido
entendimento, informando-me, para meu juízo, que o dia de feriado municipal de
Marvão era o da data do restabelecimento do concelho de Marvão, que, durante
várias décadas, fez parte do concelho de Castelo de Vide». In Aníbal Belo,
Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001,
ISBN-972-8184-66-2.
jdact e cortesia de joserodrigues
Com a amizade de JCM
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT