terça-feira, 29 de maio de 2012

Carta de Marvão. Aníbal Belo. «Ah! Lembrava-me ele, ali em cima, naquela curva que deixamos atrás, estava o Convento da Nossa Senhora da Estrela, a “Vadia”, porque se deixava ir com eles para Castela e, connosco, para Portugal... Estas notas topográficas eram entremeadas por silêncios de comprometido, naquela viagem…»


jdact e cortesia de joserodrigues

«Mas, intimidado pela minha determinação, lamentando-se, e, a contragosto, acedeu ser minha companhia, mas como quem não quer ser solidário na incriminação. Agradeci-lhe os cuidados e desvelos que me estava a dispensar e comecei viagem, alongada de agentes, a perguntar-lhe o trajecto e a história do caminho.
Ele começou a música das memórias, os indeléveis eventos, os acontecimentos efémeros... Descida a estrada do Marvão por entre castanheiros, hirtos e desfolhados, como emagrecidos da gestação invernosa, o Garcia apontava-me, ali ao lado direito, ao fundo, a Espanha e os contornos geográficos da fronteira, ribeira e monte, delimitando dois territórios, desde o tratado de Alcanizes, no tempo do nosso rei Dinis. E, lá um bocado para dentro, aquele povoado concentrado é Valência de Alcântara, que ora foi deles, castelhanos, ora nossa, conquista e reconquista de Afonso Henriques.
Ah! Lembrava-me ele, ali em cima, naquela curva que deixamos atrás, estava o Convento da Nossa Senhora da Estrela, a “Vadia”, porque se deixava ir com eles para Castela e, connosco, para Portugal...
Estas notas topográficas eram entremeadas por silêncios de comprometido, naquela viagem, que não devia ser feita por aquela rota centrífuga da sua vila natal.
Continuava, depois, nas curvas mais abaixo, o seu ladário de informações acerca daquela casa, daquele monte, daquele riacho, para que eu ficasse a conhecer a geografia da zona.
Já cá em baixo, no sopé da serra, disse-me que ali é que era a Portagem, que era o lugar mais aprazível do concelho, que o rio que ali passava debaixo da ponte era o rio Sever. Arte imediata, me veio o nome à mente, e dei comigo a declinar os afluentes do rio Tejo. Enquanto escutava os silêncios dele, emitia, ali, naquela hora e naquele lugar, juízos positivos sobre o valor do ensino e da pedagogia da memória. Suavizei-me, reconfortado nas recordações da escola primária e da minha professora e do meu pai, também profissional da ensinança.
E, rememorando outras lições e ensinamentos, naquele espaço físico, que eu identificava pela primeira vez, trouxe à conversa os judeus e a sua saga raiana, e a sua maldita sina, proclamada ora pelos reis católicos, ora pelo nosso "Venturoso". Imaginei a intolerância e a ira real de Fernando e Isabel e os respectivos decretos de expulsão, e figurei, ali, de repente, as guaritas montadas para o pagamento da portagem de entrada em Portugal, seria em dobrões de ouro, seria em quilos de prata. Avivou-se-me a carta dissuasora da filha dos reis católicos ao nosso rei Manuel, comprometendo a flor do noivado, hipotecada que estava ao decretamento da expulsão dos judeus para a diáspora.

Atravessámos depois uma zona que o rio dividia, onde pululavam castinçais finos, vimes, da cor do ouro velho. Nascidos como que em tufões ou repuxos, eram a expressão da força anímica, donde brotava a energia adelgaçada neles materializada, como rebentos da terra-mãe, toda procriadora. Formavam um mundo maravilhoso, aquela prolífera criação de varas e hastes, de vários tamanhos, que, sinestesicamente, ora me evocavam sons de música, altos e baixos, acompanhados coreograficamente por jactos de água ,daquela cor de fogo macio, ora me apelavam para a imagem de bailarinos e bailarinas, em magotes, em conversa parada e fixa, uns com os outros, dizendo que sim, e que não, aos ventos. Depois, ali era o Prado, dizia-me o Garcia, contente de cicerone que estava. Era uma terra fértil e rica.
E, enquanto o meu guia dizia da história daqueles sítios, virgens para mim, mas que sabia de deles me ter de afeiçoar, entrámos num túnel de árvores de grande porte, que acolhidamente se abraçavam, lá no alto, umas com as outras, como que para proteger o cortejo dos viandantes, a eles fornecendo a pu das sombras e a frescura das fontes.
Não aguardou o Garcia que eu o interpelasse acerca daquele monumental e aparado arvoredo, que mais não era do que uma grande alameda de árvores-mães, disciplinadas por mão humana, rentes às bordas da estrada, como praças paradas, a caminho das manobras finais. E, aditando mais uma história às outras explicações passadas, não esperou também que eu lhe perguntasse porquê aquelas sincromáticas manchas brancas e caiadas naqueles grandes troncos, que assim perspectivavam, em ilusão óptica, o horizonte, de paralelo, em vértice final». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Com a amizade de JCM
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT