quinta-feira, 10 de maio de 2012

D. Pedro V e o seu Reinado. Júlio de Vilhena. Parte 1. «… a ideia de que tinha de assistir ao acto mais solene de toda a sua vida, deviam tê-lo posto em transitórias excitações de nervos, despertando-lhe pequenas vigílias, durante as quais a preocupação literária, que habitualmente o dominava, lhe aconselharia retoques no discurso que havia de recitar às Câmaras»


Cortesia de purl

«Era o dia 16 de Setembro de 1855; o Rei levantara-se cedo; tinha de estar nas Cortes, que o esperavam para o aclamar, às nove hora da manhã. Passara mal a noite ; um furúnculo, ou, como dizia o seu professor de latim, Martins Bastos uma borbulha inflamada, causava -lhe horríveis dores numa perna, e tão grave era o sofrimento que ainda, dois meses corridos, não podia montar a cavalo.
Era o mau sangue de seu- pai que não obstante o boletim dos médicos dizer que morrera de uma hemorragia meníngea, resultante de uma queda, o certo era que falecera canceroso.
Os irmãos também eram achacados. O infante Luís morreu de 51 anos com escaras e a aquinésia, persistindo com as lesões medulares. O infante Augusto foi vítima, aos 47 anos, de uma lesão do coração. No seu espólio encontraram-se muitas mãozinhas de prata e marfim, encabadas em pequenas varas, com que costumava coçar as costas pruridas de erupções cutâneas.
Era, repetimos, sem dúvida o mau sangue de Fernando II, contaminado originariamente por alguma, “ferronnière” ancestral, espécie nosológica frequente nos príncipes de extracção alemã.
A borbulha inflamada, por um lado, e por outro a ideia de que tinha de assistir ao acto mais solene de toda a sua vida, deviam tê-lo posto em transitórias excitações de nervos, despertando-lhe pequenas vigílias, durante as quais a preocupação literária, que habitualmente o dominava, lhe aconselharia retoques no discurso que havia de recitar às Câmaras.
Levantou-se mal disposto, e enquanto se vestia, pensou no Rei Duarte, a quem se assemelhava pela eloquência, pelo saber e pela madureza do juízo, e afigurou-se-lhe que se chegava a ele mestre Guedelha, judeu, seu físico e grande astrólogo, e lhe dizia:
  • «Parece-me, senhor, que vos aparelhaes para logo entrardes na real successão que vos por direito pertence, peço-vos por mercê que este auto dilateis até passar o meio dia, e nisso prazendo a Deus fareis vosso proveito, e será bem de vosso reino, porque estas horas em que fazeis fundamento ser novamente obedecido mostram ser mui perigosas e de mui triste constellação, cá Júpiter está retrogrado e o sol em decahimento com outros signaes que no Ceo parecem assas infelices».
E Pedro V respondeu que acima de tudo estava Deus em que ele acreditava e com sua mão e ordenança estavam todas as cousas. Mas mestre Guedelha tornou dizendo:
  • «Senhor, a Ele praza que assim seja; como quer que não era grande inconveniente sobreserdes nisso um pouco para se tudo fazer prosperamente e como devia».
E Pedro V ainda replicou:
  • «Não farei, pois, não devo, ao menos por não parecer que mingoa em mim a esperança de firmeza, que em Deus e sua fé devo ter».

Cortesia de purl

E logo mestre Guedelha afirmou que reinaria poucos anos e esses seriam de grandes fadigas e trabalhos, como foram, segundo ao diante se dirá.
Então, ao ouvir a insistência do astrólogo, lembrou-se do sonho terrível que tivera na infância, ‘quando uma águia o levantava às nuvens e depois o deixava cair sobre a terra em que ficou despedaçado, levantando à mesma altura o mano Luiz’.
E, sempre pensativo, vestiu-se, e ligeiramente desjejuado, atirou-se para dentro do velho coche de seu avô João V, levando ao lado o pai e em frente o irmão, infante Luís, muito loiro e muito alvo, fazendo o ofício guerreiro de condestável.
O dia mostrava-se formoso, sem embargo de estar um pouco quente. O observatório da Escola Politécnica marcava de temperatura máxima, às 9 horas, 23,6 ºC. Horizonte enevoado e vaporoso; tempo bonançoso; bom tempo. O povo aglomerava-se nas ruas, festejando o príncipe adorado envolto numa lenda de graças e virtudes, criada pela imaginação da raça aventureira, sempre à procura de ideais nas coisas e nos homens. Aquele devia ser o Rei predestinado para fazer ressurgir Portugal das ruínas a que o arrastara uma luta fratícida de muitos anos, em que ódios e rancores se entrebatiam, fazendo estremecer o trono, e não raro correr o sangue precioso dos filhos da mesma pátria.
Sim. Parecia ser aquele rapaz aloirado, pensativo, mais português do que alemão, quem devia, no meio da paz e do amor, presidir e fomentar o progresso da gloriosa nação.
E o povo, delirante, na sinceridade das suas crenças e afeições, exultava de alegria ao ver passar por entre as colunas formadas de gente de todas as classes e de todas as idades, para quem ele atirava o seu sorriso, cheio de melancolia e de afecto, o moço que em breves horas estaria sagrado para reinar. Esse poder soberano ia ele receber daqueles que a urna, bem ou mal, lhe dava como representantes.
Era, pois, um grande dia aquele!
A porta do palácio das Cortes estava a deputação que o havia de receber. O ceptro e a coroa já lá estavam em cima sobre coxins de veludo, preparados para a investidura. A sessão magna presidiu o patriarca Guilherme Henriques de Carvalho, que, conforme o protocolo ficava em cadeira separada cá em baixo, não se esquecendo de pôr o pé no primeiro degrau do trono, como era da praxe, por ser também príncipe, graça inerente ao seu chapéu cardinalício».
In Júlio de Vilhena, D. Pedro V e o seu Reinado, DP 664 V55 610415, 4 de 07 de 1955, Academia das Ciências de Lisboa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1921.

Cortesia da AC de Lisboa/JDACT