Cortesia de purl
«Era o dia 16 de
Setembro de 1855; o Rei levantara-se cedo; tinha de estar nas Cortes, que o
esperavam para o aclamar, às nove hora da manhã. Passara mal a noite ; um furúnculo,
ou, como dizia o seu professor de latim, Martins Bastos uma borbulha inflamada,
causava -lhe horríveis dores numa perna, e tão grave era o sofrimento que
ainda, dois meses corridos, não podia montar a cavalo.
Era o mau sangue de seu-
pai que não obstante o boletim dos médicos dizer que morrera de uma hemorragia meníngea,
resultante de uma queda, o certo era que falecera canceroso.
Os irmãos também eram
achacados. O infante Luís morreu de 51 anos com escaras e a aquinésia,
persistindo com as lesões medulares. O infante Augusto foi vítima, aos 47 anos,
de uma lesão do coração. No seu espólio encontraram-se muitas mãozinhas de
prata e marfim, encabadas em pequenas varas, com que costumava coçar as costas
pruridas de erupções cutâneas.
Era, repetimos, sem
dúvida o mau sangue de Fernando II, contaminado originariamente por alguma, “ferronnière”
ancestral, espécie nosológica frequente nos príncipes de extracção alemã.
A borbulha inflamada,
por um lado, e por outro a ideia de que tinha de assistir ao acto mais solene
de toda a sua vida, deviam tê-lo posto em transitórias excitações de nervos,
despertando-lhe pequenas vigílias, durante as quais a preocupação literária,
que habitualmente o dominava, lhe aconselharia retoques no discurso que havia
de recitar às Câmaras.
Levantou-se mal
disposto, e enquanto se vestia, pensou no Rei Duarte, a quem se assemelhava
pela eloquência, pelo saber e pela madureza do juízo, e afigurou-se-lhe que se
chegava a ele mestre Guedelha, judeu, seu físico e grande astrólogo, e lhe
dizia:
- «Parece-me, senhor, que vos aparelhaes para logo entrardes na real successão que vos por direito pertence, peço-vos por mercê que este auto dilateis até passar o meio dia, e nisso prazendo a Deus fareis vosso proveito, e será bem de vosso reino, porque estas horas em que fazeis fundamento ser novamente obedecido mostram ser mui perigosas e de mui triste constellação, cá Júpiter está retrogrado e o sol em decahimento com outros signaes que no Ceo parecem assas infelices».
E Pedro V respondeu que
acima de tudo estava Deus em que ele acreditava e com sua mão e ordenança estavam
todas as cousas. Mas mestre Guedelha tornou dizendo:
- «Senhor, a Ele praza que assim seja; como quer que não era grande inconveniente sobreserdes nisso um pouco para se tudo fazer prosperamente e como devia».
E Pedro V ainda
replicou:
- «Não farei, pois, não devo, ao menos por não parecer que mingoa em mim a esperança de firmeza, que em Deus e sua fé devo ter».
Cortesia de purl
E logo mestre Guedelha
afirmou que reinaria poucos anos e esses seriam de grandes fadigas e trabalhos,
como foram, segundo ao diante se dirá.
Então, ao ouvir a
insistência do astrólogo, lembrou-se do sonho terrível que tivera na infância, ‘quando
uma águia o levantava às nuvens e depois o deixava cair sobre a terra em que
ficou despedaçado, levantando à mesma altura o mano Luiz’.
E, sempre pensativo,
vestiu-se, e ligeiramente desjejuado, atirou-se para dentro do velho coche de
seu avô João V, levando ao lado o pai e em frente o irmão, infante Luís, muito
loiro e muito alvo, fazendo o ofício guerreiro de condestável.
O dia mostrava-se
formoso, sem embargo de estar um pouco quente. O observatório da Escola Politécnica
marcava de temperatura máxima, às 9 horas, 23,6 ºC. Horizonte enevoado e vaporoso;
tempo bonançoso; bom tempo. O povo aglomerava-se nas ruas, festejando o
príncipe adorado envolto numa lenda de graças e virtudes, criada pela imaginação
da raça aventureira, sempre à procura de ideais nas coisas e nos homens. Aquele
devia ser o Rei predestinado para fazer ressurgir Portugal das ruínas a que o
arrastara uma luta fratícida de muitos anos, em que ódios e rancores se entrebatiam,
fazendo estremecer o trono, e não raro correr o sangue precioso dos filhos da mesma
pátria.
Sim. Parecia ser aquele
rapaz aloirado, pensativo, mais português do que alemão, quem devia, no meio da
paz e do amor, presidir e fomentar o progresso da gloriosa nação.
E o povo, delirante, na sinceridade
das suas crenças e afeições, exultava de alegria ao ver passar por entre as colunas
formadas de gente de todas as classes e de todas as idades, para quem ele atirava
o seu sorriso, cheio de melancolia e de afecto, o moço que em breves horas estaria
sagrado para reinar. Esse poder soberano ia ele receber daqueles que a urna, bem
ou mal, lhe dava como representantes.
Era, pois, um grande dia
aquele!
A porta do palácio das
Cortes estava a deputação que o havia de receber. O ceptro e a coroa já lá estavam
em cima sobre coxins de veludo, preparados para a investidura. A sessão magna presidiu
o patriarca Guilherme Henriques de Carvalho, que, conforme o protocolo ficava em
cadeira separada cá em baixo, não se esquecendo de pôr o pé no primeiro degrau do
trono, como era da praxe, por ser também príncipe, graça inerente ao seu chapéu
cardinalício».
In Júlio de Vilhena, D. Pedro V e o seu Reinado, DP 664 V55 610415, 4
de 07 de 1955, Academia das Ciências de Lisboa, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1921.
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