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Virtude
«Não se pode pensar em virtude sem se pensar num estado e num impulso
contrários aos de virtude e num persistente esforço da vontade. Para me
desenhar um homem virtuoso tenho que dar relevo principal ao que nele é
voluntário; tenho de, talvez em esquema exagerado, lhe pôr acima de tudo o que
nele é o modelar e o conter. Pela origem e pelo significado não posso deixar de
a ligar às fortes resoluções e à coragem civil. É um contínuo querer e uma
contínua vigilância, uma batalha perpétua dada aos elementos que, entendendo,
classifiquei como maus; requere as nítidas visões e as almas destemidas.
Por isso não me prende o menino virtuoso; a bondade só é nele o estado
natural; antes o quero bravio e combativo e com a sua ponta de maldade; assim
me dá a certeza de que o terei mais tarde, quando a vontade se afirmar e a
reflexão distinguir os caminhos, com material a destruir na luta heróica e a
energia suficiente para nela se empenhar. O que não chora, nem parte, nem esbraveja,
nem resiste aos conselhos há-de formar depois nas massas submissas; muitas vezes
me há-de parecer que a sua virtude consiste numa falta de habilidade para urdir
o mal, numa falta de coragem para o praticar; e, na verdade, não posso ter
grande respeito pelas amibas que se sobrevivem.
Só os sacristães são levados, por índole e ofício, a venerar todos os
santos, sem pôr em mais alto lugar os que encheram sua vida de esquinas e no
dobrar de cada uma sofreram agonias e suaram de angústia; mas, para nós, foram
mais longe os que mais se feriram nos espinhos de uma remissa natureza; se a
venceram merecem estar no céu; se não venceram, o próprio esforço lho devia
merecer; no entanto já o inferno é uma forma de glória; para os outros seria
bom que se criasse um novo recinto de imortalidade: e só o vejo estabelecido no
lôdo espapaçado de um fundo tranquilo, sem pregas de correntes nem restos de
naufrágios; exactamente um cemitério de medusas.
Para o que é bom por ter nascido bom a única virtude consistiria em ser
mau; aqui se mostrariam originalidade e coragem, mérito, portanto; porque ser
mau por ter nascido mau só lhe deveria dar, como aos do lado contrário, o
direito ao eterno silêncio. Por aqui se compreende que as vidas dos Sorel
tenham sempre ressonância nas almas Stendhal; e também a sensibilidade, a
delicadeza, todo o fundo de boas qualidades de certos grandes criminosos. Sei
bem os perigos que tal doutrina pode ter transportada ao social e sei também a
maneira de pôr de lado a objecção, alargando o conceito de virtude, dando-o
como o desejo de superar e não como o desejo de combater; mas de propósito
fiquei no que a virtude tem de luta entre a natureza e a vontade.
Amor do Povo
Estes amam o povo, mas não desejariam, por interesse do próprio amor,
que saísse do passo em que se encontra; deleitam-se com a ingenuidade da arte
popular, com o imperfeito pensamento, as superstições e as lendas; vêem-se
generosos e sensíveis quando se debruçam sobre a classe inferior e traduzem, na
linguagem adamada, o que dela julgam perceber; é muito interessante o animal
que examinam, mas que não tente o animal libertar-se da sua condição; estragaria
todo o quadro, toda a equilibrada posição; em nome da estética e de tudo o
resto convém que se mantenha.
Há também os que adoram o povo e combatem por ele mas pouco mais o
julgam do que um meio; a meta a atingir é o domínio do mesmo povo por que parecem
sacrificar-se; bate-lhes no peito um coração de altos senhores; se vieram parar
a este lado da batalha foi porque os acidentes os repeliram das trincheiras opostas
ou aqui viram maneira mais segura de satisfazer o vão desejo de mandar; nestes
não encontraremos a frase preciosa, a afectada sensibilidade, o retoque literário;
preferem o estilo de barricada; mas, como nos outros, é o som do oco tambor
retórico o último que se ouve.
Só um grupo reduzido defende o povo e o deseja elevar sem ter por ele
nenhuma espécie de paixão; em primeiro lugar, porque logo reprimiriam dentro em
si todo o movimento que percebessem nascido de impulsos sentimentais; em segundo
lugar, porque tal atitude os impediria de ver as soluções claras e justas que
acima de tudo procuram alcançar; e, finalmente, porque lhes é impossível permanecer
em êxtase diante do que é culturalmente pobre, artisticamente grosseiro, eivado
dos muitos defeitos que trazem consigo a dependência e a miséria em que sempre
o têm colocado os que mais o cantam, o admiram e o protegem». In Agostinho da
Silva, Considerações e Outros Textos, Editorial Minerva, Alfinete 4, Assírio e
Alvim, 1988.
Cortesia A. e Alvim/JDACT