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«A rainha Isabel predissera que a data da partida de Joana chegaria ‘num
abrir e fechar de olhos’. Desde aquele frio dia de Janeiro, os meses haviam
passado a correr e Joana encontrava-se agora sentada na companhia da mãe a
fazer as últimas verificações dos itinerários. Não estava particularmente
bem-disposta.
Todo aquele assunto se tornara bastante desagradável. Começara bem, com
a discussão do inventário da mobília e dos materiais para o seu novo e magnífico
guarda-roupa. Ficara encantada com o conteúdo da caixa de jóias, prenda dos
seus pais. Como se divertira a modelar as fiadas de pérolas, os fios de ouro,
os belíssimos brincos.
Com os dedos carregados de anéis, fizera-os dançar quais borboletas, em
volta da mãe, com as pedras preciosas nos seus aros de ouro a cintilar.
Pareciam duas raparigas. Seguiram-se assuntos mais sérios, começando pela
pensão que receberia para si própria e o seu pessoal. Seria atribuída pelo
marido, tal como João daria a Margarida uma quantia semelhante. Era uma anuidade
de vinte mil escudos, extremamente avultada, mas não era necessário maçar-se
com os pormenores, pois disporia de um tesoureiro que trataria das contas fastidiosas.
A escolha das damas de companhia irritara-a a tal ponto que insistira
em adiar a decisão até mais tarde, quando fosse, talvez, possível chegar a um
compromisso. Assim, nenhuma ficou surpreendida quando, ao ouvir a escolha da mãe
relativa ao seu confessor, Joana se tivesse revoltado, e recusasse, gritando:
- Não! Não o quero. É a vossa escolha, não a minha. Nunca me confessaria
a ele. Não gosto nem confio nele. Mãe, insisto em ter alguém que eu saiba que
me apoiará e não uma pessoa escolhida apenas para me espiar. Havei-lo escolhido
porque não confiais em mim!
- Joana, lembrai-vos de quem sois, e do que estais... - principiou
Isabel.
O bater de cascos em tropel sobre o empedrado que encheu o pátio pôs
felizmente fim à discussão.
- Deve ser João! - exclamou Joana, e Isabel concordou com um aceno de
cabeça; seria uma bênção, pois era impossível fazer qualquer progresso naquele
dia. Joana fez menção de se levantar, mas viu-se impedida pela pressãoda mão da
mãe sobre o seu pulso, exigindo-lhe que ficasse sentada.
Olhou para Isabel com uma expressão que era um misto de ira e desespero
e a mãe cedeu, retirando a mão e deixando-a ir. Como um animal libertado de uma
armadilha, Joana ergueu-se de um salto.
Lá em baixo, no pátio, João e o seu escudeiro desmontaram e entregaram
as rédeas aos cavalariços que haviam acorrido, ávidos da honra. Os outros
membros da sua casa continuavam a chegar, cada um cumprimentado e recebido da
mesma forma. Joana correu pela galeria, lançando breves olhares à excitação lá
em baixo. Então, demasiado impaciente para esperar, debruçou-se sobre a
balaustrada e bateu as palmas, chamando-o. Ele ergueu o olhar, viu-a e
lançou-lhe um grande sorriso. Acenou com o enorme chapéu de viagem, fingindo
ter de evitar a nuvem de pó saída da imensa aba antes de lhe fazer uma vénia
exageradíssima. Joana riu-se, levando os dedos à boca, e correu para o seu
quarto, para junto da mãe, a discussão já esquecida.
O pátio estava agradavelmente fresco, apesar do sol de Julho. Isabel,
Fernando e a família achavam os meses de Verão no Norte de Espanha muito mais a
seu gosto que no Sul, onde o calor intenso e o sol abrasador tornavam a vida
quase insuportável. Naquele ano, haviam decidido ir até Almazán. A partir daí,
seria mais conveniente para Isabel no que dizia respeito a supervisionar os
pormenores relativos à viagem para a Flandres, enquanto Fernando podia visitar
a corte em Saragoça as vezes que entendesse, especialmente naquele período
conturbado entre Aragão e a França.
Fora ali, havia apenas uns dias, que João, herdeiro do trono, fora investido
como príncipe das Astúrias, o que lhe concedera as cidades, as terras e os
rendimentos pertencentes ao título. Aquele castelo, erguido no alto de um monte
com vista para um vale belíssimo, fazia parte do dote e João começara já, a
mobilá-lo a seu gosto, uma residência de Verão para si próprio e para a sua
noiva.
As duas damas passaram da sombra para o calor da luz do Sol naquele
princípio de tarde. O doce perfume estival do jasmim e das rosas que se
enroscavam em volta das colunas da arcada espalhava-se no ar.
João e o escudeiro supervisionavam o descarregamento de tapeçarias,
enormes baús com baixela de ouro e de prata e grandes candelabros. Isabel
aproveitou a oportunidade para afagar o pelo castanho do pescoço da montada do
filho. Os seus pensamentos recuaram no tempo, recordando os aromas húmidos e
terrosos dos dias em que ia caçar javalis nas florestas sombrias, iluminadas
por clarões de ouro outonal. Conseguia ainda ouvir o bater diligente dos
cascos, o ranger do cabedal, o tilintar dos arreios e dos freios, o resfolegar
dos cavalos, ansiosos pela caçada. Nada se comparava àquele regozijo, àquela
excitação. Agora era demasiado velha. Suspirando, deu palmadinhas no flanco do
animal.
João avistou a mãe e veio beijar-lhe as mãos estendidas. Os criados detiveram-se,
baixando respeitosamente a cabeça, até terminarem as saudações e poderem
continuar a descarregar as carroças, antes de levarem os bois». In Linda
Carlino, “That Other Joana”, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa,
2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.
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