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«A família em que nasceu o rapazinho cego não era numerosa. Além da mãe,
havia ainda o pai e o ‘tio Maksim’, como era tratado por todos os familiares e
também por outras pessoas. O pai era igual a milhares de outros proprietários
rurais do Sudoeste da Rússia: benévolo, talvez até bondoso, tratava bem os
trabalhadores e adorava construir e reconstruir moinhos.
Este trabalho absorvia-lhe o tempo quase todo, pelo que a sua voz
apenas era ouvida em casa a horas determinadas, que coincidiam com o pequeno-almoço,
o almoço e outros acontecimentos do género. Nesses casos, pronunciava
infalivelmente a mesma frase: ‘Estás boa, alminha?’ - sentando-se a seguir à
mesa e não proferindo mais nada, a não ser que se lembrasse, de vez em quando,
de dar notícias sobre os veios de carvalho e as rodas de engrenagem. É óbvio,
então, que a sua existência pacífica e despretensiosa tinha muito pouca
influência no temperamento do filho. Ora, o tio Maksim era um homem em tudo
diferente. Uma dezena de anos antes dos acontecimentos que estamos a descrever,
o tio Maksim tinha fama de brigão muito perigoso não só nas redondezas da sua
propriedade, mas também na célebre feira de Kíev. Toda a gente se admirava: como
era possível que numa família tão respeitável em todos os sentidos, a da
senhora Popelska, Iatsenko em solteira, pudesse surgir aquele terrível mano?
Ninguém sabia de que maneira lidar com ele e o que fazer para lhe agradar. Às
amabilidades dos senhores, o homem respondia com impertinências, mas perdoava
aos mujiques a insubordinação e a grosseria, às quais qualquer ‘szlachcic’, pequeno
fidalgo polaco, dos mais pacatos teria respondido com um tabefe. Por fim e para
grande alegria de toda a gente bem-intencionada, o tio Maksim revoltou-se, por
qualquer razão, contra os austríacos e partiu para Itália onde se juntou a Garibaldi,
brigão e renegado como ele, e que, como contavam os senhores fidalgos
aterrorizados, se irmanou com o diabo e considerava abaixo de cão o próprio
Papa de Roma. Não havia dúvida de que, desta maneira, Maksim levou
irremediavelmente à perdição a sua inquieta alma herege, mas em compensação as
feiras deixaram de decorrer com grandes escândalos e muitas das mãezinhas
nobres pararam de se preocupar com o destino dos filhos.
Pelos vistos, os austríacos também estavam zangados com o tio Maksim.
De tempos a tempos o ‘Correio’, jornal desde sempre preferido pelos senhores
fidalgos, mencionava nos relatórios o seu nome entre os mais arrojados correligionários
de Garibaldi, até que, um belo dia, ficaram a saber, por intermédio do dito
jornal, que Maksim caíra juntamente com o seu cavalo no campo de batalha. Os enraivecidos
austríacos que, provavelmente, estavam de dente afiado para o pernicioso homem
de Volin (o derradeiro esteio de Garibaldi, na opinião dos conterrâneos de
Maksim), espadeiraram-no, cortando-o que nem um repolho.
- Acabou mal - disseram os fidalgos e atribuíram o facto à protecção
que São Pedro dava ao seu representante na Terra. Achavam que Maksim tinha morrido.
Contudo, viria a verificar-se que os sabres austríacos não conseguiram
desarraigar de Maksim a teimosa alma, que se lhe manteve no corpo, diga-se que
bastante estragado.
Os desordeiros garibaldinos retiraram o seu digno camarada do meio da
peleja, internaram-no num hospital qualquer, e foi assim que, passados alguns
anos, Maksim apareceu subitamente em casa da irmã e ficou.
Agora já não estava para duelos. Amputaram-lhe toda a perna direita,
andava com muleta; a mão esquerda estava inutilizada e dava apenas para se apoiar,
mais ou menos, no bastão. Em geral, estava mais sisudo, mais quieto, e apenas
de vez em quando a sua língua afiada dava golpes tão certeiros como, em tempos,
o seu sabre. Deixou de ir às feiras, raramente aparecia na sociedade e passava quase
todo o tempo na sua biblioteca, lendo livros, ninguém sabia que livros eram,
pressupunha-se que eram descaradamente hereges. Também escrevia qualquer coisa,
mas como os seus escritos nunca eram publicados no ‘Correio’, ninguém os levava
a sério». In Vladimir Korolenko, O Músico Cego, Arbor Litterae, 2010, ISBN
978-989-8292-30-8.
Cortesia de Arbor Litterae/JDACT