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2ª Parte
«De certo modo, esta obra até pode surpreender o leitor por nela podermos
observar alguns valores sociais e políticos que ainda permanecem no nosso país
actualmente. É sabido que o Portugal de hoje evidencia um carácter tradicional
e ao mesmo tempo um carácter moderno. Talvez possamos aplicar isto à luz da
História de longa duração (a estrutura) como se o limite entre o móvel e o
imóvel fosse nesta ciência, e de facto é, pouco percetível. E que o desenlace
de "O Crime de Arronches" não é de todo em todo inesperado. Palhoça
é, de facto, o autor do crime, em legítima defesa, porém. O Tição tentou antes
acercar-se de Margarida (mulher do Palhoça) com intuitos que facilmente se
adivinham e o marido desta ultima tentando impedir aquilo que parecia inevitável
reage de tal maneira que o confronto físico entre ambos termina com a morte do
criado do Bispo da Guarda (Tição). O corpo deste vai aparecer bem distante do
local onde ocorreu o crime em que nem a roupa escapou ao furto por parte de um
grupo de ciganos. Talvez sejam estes mesmos ciganos, que depois do furto foram
capturados, até confessaram a sua prática, os personagens que ao fim e ao cabo
ajudam a explicar a solução encontrada pela Justiça para resolver o caso do
assassinato do Tição. A absolvição, ou melhor, o perdão de Sua Alteza bem
expresso nestas palavras:
"... por não se provar o roubo, mas antes o legítimo desforço de
um homem afrontado em sua honra..."
São a confirmação de que a Justiça pode funcionar eficazmente apesar de
ainda persistir
no nosso país, herança de vários séculos, uma mentalidade desculpabilizadora,
onde não há culpados e, expressão muito em voga, a "Justiça morreu
solteira". Seria injusto não evidenciar a riqueza do vocabulário desta
pequena peça de teatro que nos obriga a uma consulta frequente do dicionário,
expressões como ‘birbante’, ‘esmoleira’, ‘bargante’, ‘recoveiro’, ‘melgueira’, ‘remoques’,
e muitos outros termos. Por último, e este não é o menor mérito da peça, é de
salientar que não foi esquecida a situação da mulher que, no século XVI, apesar
de se encontrar num patamar juridicamente baixo, em relação ao companheiro, é aqui
apresentada como uma criatura cheia de coragem, de ‘antes quebrar que torcer’,
plena de perseverança e de coragem. Essa mulher, de nome Margarida (mulher do
Palhoça) para além de inseduzível e de resistir a tudo o que é insidioso fornece-nos
a prova de que marido e mulher no século XVI, mais do que diferentes, eram de
facto complementares.
Muitos discutem hoje o papel da mulher na sociedade actual. Mas nas
sociedades de antanho, podemos sem dúvida afirmá-lo, o papel da mulher não era
assim tão redutor como muitos pensam.
Não foi minha intenção, nem poderia sê-lo, fazei uma síntese da obra de
Henrique Lopes de Mendonça. Mas isso não é sinónimo de menosprezo pela mesma. E
antes a de permitir, a quem quiser ler o livro, de descobrir por si próprio os
seus principais triunfos. A isto não será alheio o facto de se reconhecer que
referências a Portalegre, Crato e Arronches poderem ser estímulos para a leitura
da obra em causa. E que o autor de *A Portuguesa”, nos concedeu o privilégio de
saber da importância daquelas terras (assim como da figura do Bispo da Guarda
que tanto diz à cidade de Portalegre) no nosso passado. Importância que nós não
queremos menor nos dias de hoje». In Fernando Figueiredo Martinho, O Crime de Arronches,
Revista Plátano, nº 4, 2008, Fórmula Gráfica.
Cortesia de Plátano/JDACT