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Os Contos dos Cronistas
«Uma verdadeira história
romanceada é a que nos ficou conservada nos quatro fragmentos trecentistas das Crónicas
breves de Santa Cruz. Frases como «a estoria nom divisa aqui os nomes
deles…» ou «conta a estoria em este lugar…» fizeram supor, inclusivamente a
Manuel Rodrigues Lapa, que as histórias derivassem de modelos mais antigos e
não passassem de meras traduções. Há que observar, porém, que o recurso à auctoritas
de uma fonte, real ou apenas fictícia, é uma constante da literatura
medieval, e não só da cronística. Pense-se em expressões análogas adoptadas
pelos narradores franceses que desde o século XIII reduziam a prosa os romans
arturianos e as chansons de geste.
Pelo que aqui nos diz
respeito, sublinharemos o valor intrínseco de expressões como contar e divisar,
usadas pelos cronistas para designar a narração. No plano específico da arte do
conto os autores anónimos das Crónicas mostram, com efeito, dotes fora
do comum.
Uma página justamente
famosa (retomada com maior riqueza de pormenores por Duarte Galvão na sua Crónica
de D. Afonso Henriques, não faltando até quem tenha atribuído ao mesmo
Duarte as mesmas Crónicas) é a que narra como o bárbaro e rude soberano,
em polémica com Roma e com o papa, nomeou bispo um cónego negro, o dócil
Martinho. O conto é desenvolto e pleno de humor.
Quando anunciam ao rei
que chegara de Roma um cardeal para o excomungar…
- «Senhor, aqui vos vem uũ Cardeal de Roma porque sodes mizcrado com o Papa, por este bispo que assi fezestes. El-rei disse: ― Nom me arrepeesco. E disserom-lhe: ― Todos os reis o veem receber e lhe beijam a mão. Disse el-rei estonce: ― Nom seeria tanto honrado cardeal nem Apostólico, se i veesse que me desse a mão a beijar, que lhe eu nom cortasse o braço polo côvodo, e desto el nom podia falecer»
Como se vê, a prosa é já
segura, comportando-se com desenvoltura também na realização mimética da linguagem
falada.
Ainda mais notáveis, sob
este aspecto, são os quatro Livros de Linhagens conservados num códice
do século XV, hoje no Arquivo da Torre do Tombo. O último deles, redigido sob a
direcção do conde Pedro, filho bastardo do rei Dinis I, é sem dúvida o mais
interessante no plano literário, especialmente no aspecto narrativo.
Embora tivesse sido
composta nos primeiros decénios do século XIV, a obra segue os modelos
tradicionais da historiografia medieval, de Romualdo a Godoffredo de Viterbo,
acolhendo, além das indicações históricas duma certa credibilidade, também
parte da matéria lendária que constitui o património narrativo do Ocidente não
apenas românico. Os contos propriamente ditos são vários e provenientes de
fontes diversas. O conde Pedro é um autor culto e requintado, que mostra
conhecer várias línguas e apoia o seu depoimento sobre numerosas auctoritates,
desde Aristóteles aos enciclopedistas medievais. As suas linhagens movem-se num
amplo espaço, de Jerusalém à Síria, ao Egipto, Babilónia, Roma, Grã-Bretanha,
reino dos Godos, Espanha, Navarra, França, Aragão e Portugal. O que o
compilador procura é, sobretudo, a solidariedade de classe:
- «meter amor e amizade antre os nobres fidalgos de Espanha». A sua obra fica, pois, substancialmente confinada ao âmbito particular da corte, diz respeito aos nobres e aos seus clientes.
Todavia, muitas das
lendas recolhidas pelo conde Pedro, graças à intervenção dos jograis e
trovadores próximos da Coroa, adquirem uma mais ampla difusão e sugestionam a fantasia
popular. E, de resto, podem encontrar-se no mesmo Nobiliário, além das
histórias mais requintadas, também redacções claramente popularescas dos
contos.
No plano especificamente
narrativo, são vários os momentos de relevo. Se a história do rei Lear e das
suas três filhas, que aparece aqui com uma roupagem literária que se antecipa
bastante em relação às outras versões ocidentais mais célebres, não se afasta
ainda do mero tom exemplar, já na lenda da «Molher pee de cabra» vemos que o
cronista experimenta técnicas narrativas mais complexas, como por exemplo a
descrição directa dos diálogos e, sobretudo, o típico enredo da fábula de
magia, com o herói dotado de características sobrenaturais e a intervenção de
ajudantes miraculosas.
Estamos, pelo contrário, em plena teratologia com a descrição da
«Molher Marinha», nada menos do que uma sereia; trata-se duma deformidade
maravilhosa que remonta provavelmente ao Liber de Monstris carolíngio, e
que chegou a Portugal por intermédio de Bartolomeu Anglico». In Luciano Rossi,
A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa, Instituto de Cultura
Portuguesa, Presidência do Conselho de Ministros, Biblioteca Breve, volume 38,
série literatura, 1979,
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