domingo, 3 de junho de 2012

A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa. Luciano Rossi. «Ainda mais notáveis, sob este aspecto, são os quatro Livros de Linhagens conservados num códice do século XV, hoje no Arquivo da Torre do Tombo. O último deles, redigido sob a direcção do conde Pedro, filho bastardo do rei Dinis I, é sem dúvida o mais interessante no plano literário, especialmente no aspecto narrativo»



Cortesia de wikipedia

Os Contos dos Cronistas
«Uma verdadeira história romanceada é a que nos ficou conservada nos quatro fragmentos trecentistas das Crónicas breves de Santa Cruz. Frases como «a estoria nom divisa aqui os nomes deles…» ou «conta a estoria em este lugar…» fizeram supor, inclusivamente a Manuel Rodrigues Lapa, que as histórias derivassem de modelos mais antigos e não passassem de meras traduções. Há que observar, porém, que o recurso à auctoritas de uma fonte, real ou apenas fictícia, é uma constante da literatura medieval, e não só da cronística. Pense-se em expressões análogas adoptadas pelos narradores franceses que desde o século XIII reduziam a prosa os romans arturianos e as chansons de geste.
Pelo que aqui nos diz respeito, sublinharemos o valor intrínseco de expressões como contar e divisar, usadas pelos cronistas para designar a narração. No plano específico da arte do conto os autores anónimos das Crónicas mostram, com efeito, dotes fora do comum.
Uma página justamente famosa (retomada com maior riqueza de pormenores por Duarte Galvão na sua Crónica de D. Afonso Henriques, não faltando até quem tenha atribuído ao mesmo Duarte as mesmas Crónicas) é a que narra como o bárbaro e rude soberano, em polémica com Roma e com o papa, nomeou bispo um cónego negro, o dócil Martinho. O conto é desenvolto e pleno de humor.
Quando anunciam ao rei que chegara de Roma um cardeal para o excomungar…
  • «Senhor, aqui vos vem uũ Cardeal de Roma porque sodes mizcrado com o Papa, por este bispo que assi fezestes. El-rei disse: ― Nom me arrepeesco. E disserom-lhe: ― Todos os reis o veem receber e lhe beijam a mão. Disse el-rei estonce: ― Nom seeria tanto honrado cardeal nem Apostólico, se i veesse que me desse a mão a beijar, que lhe eu nom cortasse o braço polo côvodo, e desto el nom podia falecer»
Como se vê, a prosa é já segura, comportando-se com desenvoltura também na realização mimética da linguagem falada.
Ainda mais notáveis, sob este aspecto, são os quatro Livros de Linhagens conservados num códice do século XV, hoje no Arquivo da Torre do Tombo. O último deles, redigido sob a direcção do conde Pedro, filho bastardo do rei Dinis I, é sem dúvida o mais interessante no plano literário, especialmente no aspecto narrativo.
Embora tivesse sido composta nos primeiros decénios do século XIV, a obra segue os modelos tradicionais da historiografia medieval, de Romualdo a Godoffredo de Viterbo, acolhendo, além das indicações históricas duma certa credibilidade, também parte da matéria lendária que constitui o património narrativo do Ocidente não apenas românico. Os contos propriamente ditos são vários e provenientes de fontes diversas. O conde Pedro é um autor culto e requintado, que mostra conhecer várias línguas e apoia o seu depoimento sobre numerosas auctoritates, desde Aristóteles aos enciclopedistas medievais. As suas linhagens movem-se num amplo espaço, de Jerusalém à Síria, ao Egipto, Babilónia, Roma, Grã-Bretanha, reino dos Godos, Espanha, Navarra, França, Aragão e Portugal. O que o compilador procura é, sobretudo, a solidariedade de classe:
  • «meter amor e amizade antre os nobres fidalgos de Espanha». A sua obra fica, pois, substancialmente confinada ao âmbito particular da corte, diz respeito aos nobres e aos seus clientes.
Todavia, muitas das lendas recolhidas pelo conde Pedro, graças à intervenção dos jograis e trovadores próximos da Coroa, adquirem uma mais ampla difusão e sugestionam a fantasia popular. E, de resto, podem encontrar-se no mesmo Nobiliário, além das histórias mais requintadas, também redacções claramente popularescas dos contos.
No plano especificamente narrativo, são vários os momentos de relevo. Se a história do rei Lear e das suas três filhas, que aparece aqui com uma roupagem literária que se antecipa bastante em relação às outras versões ocidentais mais célebres, não se afasta ainda do mero tom exemplar, já na lenda da «Molher pee de cabra» vemos que o cronista experimenta técnicas narrativas mais complexas, como por exemplo a descrição directa dos diálogos e, sobretudo, o típico enredo da fábula de magia, com o herói dotado de características sobrenaturais e a intervenção de ajudantes miraculosas.
Estamos, pelo contrário, em plena teratologia com a descrição da «Molher Marinha», nada menos do que uma sereia; trata-se duma deformidade maravilhosa que remonta provavelmente ao Liber de Monstris carolíngio, e que chegou a Portugal por intermédio de Bartolomeu Anglico». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, Presidência do Conselho de Ministros, Biblioteca Breve, volume 38, série literatura, 1979,
 

  Cortesia de Instituto Camões/JDACT