quinta-feira, 21 de junho de 2012

A Dramaturgia Quinhentista em Portugal. Diogo de Teive. Nair de Nazaré Soares. «A tragédia, que combina a sublimidade do estilo com o lirismo das odes corais, vai ser um género privilegiado no Renascimento. Dirigida a despertar emoções num público receptor, a tragédia define-se como experiência emocional e intelectual, com uma função emotiva, um valor didáctico»


Colégio das Artes
Nair de Nazaré Soares
jdact

«O teatro, em Portugal, floresce à sombra das instituições escolares. O reconhecimento do seu papel pedagógico, manifestado por alvarás régios de João III que prescreviam a realização de representações na Universidade, à semelhança do que acontecia nos diversos colégios da Europa, preside ao espírito da definição curricular do Colégio das Artes. É sobretudo com a criação deste Colégio que a composição e a pragmática teatral fazem parte integrante da ratio studiorum, como elementos fundamentais na formação retórica e moral dos alunos.
Coimbra vai conhecer um renovado vigor com a presença, no meio académico, de autores eminentes de tragédias novilatinas: os «Bordaleses» George Buchanan, Guillaume de Guérente e Diogo de Teive. A encenação de peças de autores antigos ou da autoria de mestres ou de alunos, no acto de graduação em Artes, empresta cor e brilho à vida estudantil, pois ultrapassa os limites da comunidade académica e envolve, no entusiasmo pelo espectáculo, a própria comunidade civil.
Mas nem só em Portugal o teatro se cultiva e desenvolve nos Colégios universitários, alfobres de ideias novas e centros de renovação cultural. O intercâmbio intelectual, favorecido pelo magistério de mestres comuns nos vários colégios europeus, onde a língua de comunicação e de ensino era o latim, desempenha um papel de relevo nas origens e evolução da arte dramática, no século XVI.
Compreende-se assim que, nesta época, o discurso dramático e mesmo o discurso literário, em geral, qualquer que seja o género cultivado, revele profunda influência da retórica escolar. A pedagogia retórica que visa a perfeição do discurso, a partir do estudo aturado dos autores clássicos, no original, assenta na prática da memória e na ars combinatoria. Estas, sendo postas ao serviço da multiplex imitatio, tão defendida pelos humanistas desde Petrarca, permitem que as exercitationes não sejam meras repetitiones e se tornem muitas vezes esboços, senão mesmo sólidos alicerces de obras literárias. Os próprios themata escolares, de carácter predominantemente celebrativo, a que o género demonstrativo dá o tom, influíram nas diversas formas literárias e de sobremaneira na dramaturgia quinhentista, maneirista e barroca.
A tragédia, que combina a sublimidade do estilo com o lirismo das odes corais, vai ser um género privilegiado no Renascimento. Dirigida a despertar emoções num público receptor, a tragédia define-se como experiência emocional e intelectual, com uma função emotiva, um valor didáctico.
Instrumento sedutor da mimese dramática é a linguagem, a palavra, a que a Poética e a Retórica, com seus recursos estilísticos, conferem força e vigor expressivos. Através do debate e do confronto de ideias das diferentes personagens, a tragédia combina o discurso ético e o agonístico, e os três géneros retóricos, demonstrativo, deliberativo e judicial, com predominância do primeiro.
Sem deixar de ser sobretudo um «poema sacro», na esteira da herança medieval, e de acordo com os padrões de sensibilidade da época, a tragédia transpõe para as figuras bíblicas todo um realismo simbólico que as identifica, no seu comportamento, no seu agir consciente ou involuntário, com personagens do mundo real contemporâneo, com suas paixões, conflitos e problemas muito actuais.

Não quer isto dizer que a história e a mitologia não continuassem a servir de inspiração aos poetas dramáticos quinhentistas, em latim e em língua vulgar, como o provam, entre nós, a desaparecida tragédia Cleópatra de Sá de Miranda, a Ioannes Princeps Tragoedia – a Tragédia do Príncipe João – de Diogo de Teive e a Castro de António Ferreira. Os modelos da Antiguidade e os seus mitos cativaram dramaturgos da dimensão de George Buchanan que à tradição do teatro de carácter alegórico, ainda dominante, quis ver substituído o gosto da inspiração nos modelos clássicos. Foi com esse objectivo, e para fazer brotar nos escolares o amor da Antiguidade, como abertamente o declara na Buchanani uita scripta ab ipso, que ele compôs as suas tragédias. Representadas no Colégio de Bordéus, como testemunha o então aluno Michel de Montaigne, foram-no muito provavelmente em Paris, Coimbra e Cambridge, onde Buchanan ensinou.
A produção dramática do humanista escocês, marco importante nas origens do teatro moderno europeu, é considerado o mestre dramático da Plêiade, inclui duas tragédias de assunto bíblico, Baptistes, menos rica e movimentada do que Jephtes, modelada sobre a Ifigénia em Áulide, que vai servir de fonte de inspiração ao teatro posterior. São ainda da sua autoria as traduções livres de Eurípides, Medea e Alcestis, em que a temática amorosa, tão ao gosto renascentista, entra como elemento do conflito.

Diogo de Teive, o português que percorrera os diversos centros intelectuais da Europa, onde adquirira uma dimensão de saber e mentalidade verdadeiramente humanistas, é autor, como Buchanan, seu colega e amigo, de duas tragédias bíblicas David e Judith.
David, sobre o episódio de Golias que David abateu com a sua funda, foi levada à cena em Santa Cruz, no claustro da Portaria, em 16 de Março de 1550, por ocasião do bacharelato em Artes do monarca António I, filho do Infante Luís, irmão de João III». In Nair de Nazaré Castro Soares, A Dramaturgia Quinhentista em Portugal. Diogo de Teive, Revista de Letras, série II, nº 3, Universidade de Coimbra, 2004.

Cortesia da Universidade de Coimbra/JDACT