Os Filhos da Luz. Paris, 21 de
Janeiro de 1793
«Realmente é muito
curiosa a maneira como as impressões ficam gravadas no nosso cérebro, para
depois emergirem, de vez em quando, graças ao efeito quase mágico da memória.
De um desfile demorado, recordamos não a aparência marcial do elegante capitão
ou as palavras piedosas pronunciadas de maneira emotiva pelo capelão ao
abençoar as tropas, nem mesmo a variedade de cores dos uniformes. O que fica retido
na nossa mente, pelo contrário, é o semblante acalorado de um soldado camponês,
suarento e avermelhado, a quem o uniforme de gala atormentava como se o estivesse
submetendo a uma tortura. De um ‘te-déum’ solene esquecemos a pregação sentida
do Evangelho, o grande número de fiéis e até o motivo transcendental da cerimónia
impressionante, mas no coração fica impressa a aparência sonolenta de um sacristão
barbeado com descuido ou da anciã que cochichava durante a homília. Assim age a
memória, e a de Karl não era uma excepção entre as de outros tantos integrantes
do género humano. Daquela manhã, ele se lembraria de muitas coisas, mas,
principalmente, ficaria inscrita nas suas lembranças a colocação assimétrica do
patíbulo.
Tratando-se de uma praça
e levando-se em conta a quantidade nada desprezível de espectadores, podia-se
dizer que metade de Paris estava concentrada naquele lugar, o mais lógico teria
sido instalar aquele ambiente de morte no centro, procurando a equidistância,
para que o maior número possível de espectadores contemplasse, talvez até com
deleite, quase sempre com curiosidade, o que iria acontecer dentro de alguns segundos.
No entanto, no fim das contas, os guardiães da revolução, os defensores da liberdade,
os impulsionadores da igualdade tinham optado por colocá-lo quase numa esquina.
O patíbulo erguia-se
assim, entre o caminho que levava aos Champs Eliseés e um curioso... pedestal?
Sim, tudo parecia indicar que aquele volume enorme e quase amorfo tinha sido um
pedestal em algum momento de um passado talvez não distante.
Se bem que, a ser assim,
para que estátua exactamente ele tinha servido de plataforma? Devia ter sido
uma escultura odiada, porque a tinham arrancado quase pela raiz. Nem mesmo o
pedestal tinha-se salvado da acção daquelas multidões que os dirigentes da revolução
chamavam com vigor de "cidadãos" e de "o povo". Karl achou
inclusive que, em outros tempos, o pedestal devia ter contado com um
revestimento de mármore e bronze, mas desses materiais tão nobres só restavam
agora fragmentos em mau estado.
Até a pedra, que agora
aparecia, riscada e triste, a descoberto, como uma mulher que tivessem tirado
da cama para lhe arrancar a roupa em seguida, tinha um aspecto deplorável, como
se alguém tivesse tido prazer em espancá-la e, no final, enfadado e exausto,
tivesse desistido da tarefa extenuante.
O cadafalso tinha sido
erguido a poucos passos daquele vestígio lastimável de um passado que, de tão
próximo, quase parecia presente e que os "cidadãos" desejavam arrancar
pela raiz. Tinha sido coberto por tábuas compridas, colocadas de maneira transversal,
que serviam para esconder uma complicada estrutura que parecia proveniente do
Garde-Meuble. Exactamente no extremo oposto ficava a escada sórdida que
terminava na parte alta do cadafalso, desprovida de corrimão.
Karl sentiu como se uma
bola de metal o atingisse violenta e inesperadamente na boca do estômago,
quando contemplou um objecto de forma cilíndrica colocado sobre o patíbulo.
Estava coberto de couro e, sim, não restava dúvida, era a cesta onde a cabeça do
condenado deveria cair. Claro que não se tinha certeza de que fosse acontecer
assim.
De saída, a lâmina da
guilhotina não parecia muito pesada. Na verdade, era pequena e tinha uma forma
curva, quase como um daqueles gorros frígios que muitos dos presentes usavam.
Como não se via nenhum dispositivo que pudesse segurar a cabeça do réu uma vez
que tivesse sido separada do corpo, podia-se imaginar que ela saltaria do
cadafalso e talvez chegasse até à multidão. Os servidores da liberdade teriam preparado
tudo dessa maneira ou, pelo contrário, tratava-se de mais uma demonstração de
incompetência, que por ser grosseira não era menos soberba, e da qual davam
mostras com tanta frequência? Karl não sabia e, para falar a verdade, também
não tinha nesses momentos um espírito suficientemente forte para se dispor a
investigar isso.
De maneira inesperada,
uma rajada de vento percorreu a praça, arrancando-o daquelas reflexões. Não
serviu, no entanto, para aliviar o mal-estar que tinha tomado conta dele. Pelo
contrário: arrastou até seu nariz, mais forte e vigorosa, uma mistura repugnante
e variada de cheiros. Roupa suja, suor acumulado em axilas e pés, baforadas de
álcool mal digerido... tudo aquilo o envolveu com seu fedor espesso e, por um momento,
ele pensou que não conseguiria conter a ânsia de vómito. Mas conseguiu.
Custara-lhe muito chegar
até ali e não estava disposto a perder o espetáculo por culpa do asco. Um
murmúrio, inegável mas reprimido, avisou-o de que tudo iria começar em alguns
instantes. Não se enganou. Em meio de um silêncio sepulcral, uma carroça desgastada,
puxada por cavalos, entrou na praça e se dirigiu para o cadafalso. Se não fosse
pelas pessoas que ficaram na ponta dos pés para poder observar melhor a cena, e
que se espezinharam, e que amaldiçoaram, e que blasfemaram, quase teria
parecido que não havia ninguém naquele lugar.
O carro chegou, lenta
mas inexoravelmente, até ao patíbulo, e Karl pôde ver que os carrascos eram
quatro. Se não fosse pelas divisas, tricolores e desproporcionalmente grandes,
que usavam nos modestos chapéus de três pontas, qualquer um teria dito que
pertenciam ao antigo regime. As mesmas calças, as mesmas casacas, os mesmos penteados...
bem, no fim das contas, também executavam o mesmo ofício realizado tantas vezes
ao longo dos séculos.
O réu estava acompanhado por três sacerdotes, era evidente, mas o comportamento
deles não poderia ser mais dessemelhante. Dois deles estavam vivendo, sem
qualquer sombra de dúvida, um momento extraordinariamente divertido. Karl pestanejou
para ter certeza de que o que estava vendo era real, e, claro, não teve dúvida alguma:
aqueles dois clérigos brincavam como se estivessem desfrutando de uma alegre romaria.
Engoliu a saliva. A praça transbordava de inimigos do condenado, mas ninguém se
tinha atrevido a se mostrar alegre naquelas circunstâncias. Aqueles dois eram a
excepção. Inclusive, um deles tinha começado a apontar a barriga e os quadris
do réu e a zombar de suas formas. O terceiro, pelo contrário, demonstrava um
comportamento diametralmente oposto. Da distância em que se encontrava, Karl
não podia distinguir suas feições com clareza, mas tudo parecia indicar que era
vítima de um forte retesamento que talvez pudesse ser atribuído à tristeza.
Não, aquele sacerdote não apenas não se divertia com a cena como, de facto, ela
devia estar-lhe causando uma dor insuportável». César Vidal, O Crime dos Illuminati,
Relume Dumarã, 1958, Ediouro Publicações S.A., 2006.
Cortesia de Relume
Dumarã/JDACT