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Das Miragens da História
à Visão Sociológica dos Factos
«Depois dos primeiros
rasgos de Oliveira Martins no século XIX, a perspectiva sociológica foi
introduzida na historiografia portuguesa a partir da segunda década do nosso
século. Coincide esta introdução com o período histórico da vigência da
Primeira República, e não é de todo estranha a essa circunstância.
Contribuiu para isso,
efectivamente, o movimento de renovação mental encetado por uma associação ou agrupamento
de intelectuais republicanos e nacionalistas que se congregaram sob a
designação significativa de «Renascença Portuguesa». Jaime Cortesão, sócio fundador,
António Sérgio e Raul Proença imprimiram-lhe, em contraposição com outra
corrente, a dos «saudosistas», uma feição progressista, racional, crítica e interventora.
Em 1912 apareceu na
revista daquela agremiação, A Águia, um artigo de Cortesão, então
professor liceal no Porto, sobre o ensino da História pátria. Nele sobrepunha
os factores democráticos, a acção do povo na história, aos conceitos
tradicionais assentes no heroísmo individual e preconizava uma nova orientação para
o ensino da disciplina: «Para que as escolas dêem à mocidade portuguesa o conhecimento
mais completo da alma da sua Raça [sic] é antes de mais nada necessária uma
nova orientação no ensino da História pátria, sob os diferentes aspectos, e
tanto na escola primária como na secundária. Ensinar a História pátria segundo
os factos mais notáveis do reinado de tal ou tal figurão é tudo quanto há de
mais falso, pernicioso e bolorento».
Logo no ano seguinte era
Sérgio quem, então no Rio de Janeiro, lançava sobre a História portuguesa uma série
de quesitos conducentes a iluminar, à luz nova da interpretação sociológica (e
também económica, e também geográfica, e também cultural) múltiplos aspectos
que permitissem responder sobre vários problemas inquietantes da sociedade
portuguesa, nomeadamente o seu persistente bloqueamento e o isolamento de
Portugal da Europa. Quais as causas históricas deste atrofiamento social e
cultural?
Foi na via destas
inquietações, e com vista à sua superação inovadora, que tanto Sérgio como
Cortesão se viraram para os problemas da História. Cortesão havia mesmo de
fixar mais tarde a sua vocação de historiador, sobretudo a partir de 1922, no sentido
de uma profunda e renovadora investigação, quer no que respeita aos factores e circunstâncias
dos Descobrimentos Portugueses, quer na busca das raízes democráticas na
formação de Portugal. Com uma visão totalizante da História «compreender a
totalidade da nossa História», defendia que a «história social domina hoje toda
a História», e, consequentemente, «caminhando a par com a geografia humana e a sociologia,
sem se confundir com elas, assenta de um lado sobre o económico, e, do outro,
sobre as variações e as modalidades da distribuição do povoamento humano». Esta
absorção de diferentes disciplinas era o resultado do despertar das ciências
sociais, que em Portugal se afirmara desde fins do século passado. A pluridisciplinaridade
entrava assim na historiografia portuguesa do século XX pelas mãos de Cortesão
e Sérgio.
Se Cortesão se elevou a
uma posição cimeira (e pioneira) de historiador, Sérgio, por sua vez, não foi, não
quis ser, um historiador no sentido estrito do termo, um erudito da História.
Ele próprio o afirmava (em 1925): «…a minha pessoa, que não tem pretensões a
historiador» 3 ou (em 1932): «Não sou erudito nem pretendo sê-lo»; «o que me
interessa não é a História, mas somente a mentalidade com que nós a abordamos: por
isso, e só por isso, tenho eu escrito sobre os temas da História».
A interpretação
histórica interessava-lhe, porém, por dois aspectos para ele fundamentais. Por
um lado, pelo que ela representa de exigência crítica, a interpretação sendo
uma questão essencialmente de coerência do pensamento. Por outro lado, do ponto
de vista social, pelo que ela implica no comportamento. Já em 1920 havia dito:
«Águas passadas não movem moinhos; move o moinho, porém, a atitude do presente
perante elas, e por isso esta, e só esta, tenho eu por alvo na minha crítica». E
em 1932: «A História, ao cabo de contas, serve sobretudo para nos libertarmos
dela». Explicará noutra altura (1941) o intento prático e pedagógico com que
encarou os problemas da História nacional:
- «Tomo-a como um meio dos mais adequados para nos familiarizarmos com os casos da nação presente, com as necessidades e os problemas de Portugal de agora. Penso no agora, e na tua acção. O deixarmos aos mortos o enterrar os seus mortos e o seguirmos “avante para além dos túmulos” (como aconselhava um Goethe) é hoje mais necessário do que nunca o foi».
Foi a atitude do
pedagogista, de que se reclamou toda a vida, que lhe solicitou a indagação da
História. Escrevia em 1932: «Pouco me interessaria a atitude de espírito com
que um povo considera a sua própria História, se ela não influísse na atitude
de espírito com que se ele orienta no seu viver presente. Mas influi.» Isto porque
«quem vê com miragens o seu passado constrói com miragens o seu
futuro». E em 1959 esclarecia mais uma vez:
- ‘O meu objectivo não é propriamente o de informar sobre a História, mas o de formar o espírito da gente moça para uma visão filosófica e sociológica dos factos, como preparação para a obra da elevação do Povo, que lhe cumpre agora empreender’».
In Victor Sá, A
historiografia sociológica de António Sérgio, Instituto de Cultura Portuguesa,
CV camões, Biblioteca Breve, Gráfica da Livraria Bertrand, 1979.
Cortesia de Instituto
Camões/JDACT