quinta-feira, 21 de junho de 2012

A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa. Luciano Rossi. «Na sua forma mais complexa, o conto apresenta uma série substancialmente linear de funções essenciais. Em primeiro lugar o amor «por ouvido», tipicamente cortês, do rei Ramiro ‘ouuyo fallar da fermusura e bomdade de hũua moura’; a falsa proposta de amizade ao irmão da rapariga, antigo adversário…»



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Os Contos dos Cronistas
«Mas o conto justamente mais conhecido do Nobiliário de Pedro é, talvez, a chamada Lenda de Gaia, chegada até nós em duas redacções, inseridas no segundo e no quarto Livros de Linhagens, várias vezes analisada pelos romanistas e ultimamente por Manuel Rodrigues Lapa.
Trata-se de um verdadeiro conto cavaleiresco derivado do poema alemão-antigo Salmon und Markolf , cuja intriga reencontramos também na chanson de geste do Bastard de Bouillon, recentemente editada por Robert F. Cook. É um conto de amor e aventuras, centrado na audácia do herói que se apresenta só, humildemente vestido, no castelo do inimigo que lhe raptara a mulher, e nas reacções contraditórias desta última.
As duas redacções do conto divergem em relação a elementos não marginais, porque a versão mais reduzida (a do segundo livro) se refere, em substância, a um dos muitos exempla misóginos sobre a perfídia das mulheres, enquanto a mais rica (a do Nobiliário de Pedro) oferece uma análise aguda da psicologia dos personagens ao mesmo tempo que nos transporta para um ambiente inequivocamente cortês. Convencido de que a segunda redacção representa uma ampliação da primeira, realizada pelo próprio Pedro com uma consciência literária mais desenvolta, Lapa designa com a letra A a versão resumida e com a letra B a ampliada. Só que esta hipótese, que coincidia com a minha primeira impressão sobre as relações entre os dois textos, é contrariada por uma análise que valorize a lição de Rychner sobre as recomposições populares e as degradações de transmissão pela memória.
Na sua forma mais complexa, o conto apresenta uma série substancialmente linear de funções essenciais. Em primeiro lugar o amor «por ouvido», tipicamente cortês, do rei Ramiro ‘ouuyo fallar da fermusura e bomdade de hũua moura’; a falsa proposta de amizade ao irmão da rapariga, antigo adversário, destinada apenas a «remover a falta inicial», vencendo a sua recusa «fez com elle grandes amizades, por cobrar aquella moura»; o rapto da jovem, realizado graças à intervenção de um ajudante miraculoso, neste caso o mago Aaman, o qual «per suas artes tirou-a hũua noite dõde estava e levou-a aas galees…», o nome alusivo (segundo o costume medieval) que o rei impõe à moura depois de a ter baptizado, um nome que, como observa justamente Rodrigues Lapa, trai uma origem germânica «e pos-lhe nome Ártiga, que queria tanto dizer naquel tempo castigada e emsinada e cõprida de todollos bes»; a ira e o desejo da desforra de Alboazer Alboçadam que rapta a rainha Aldora, mulher de Ramiro, para vingar o ultraje sofrido; a empresa audaz do rei que com a sua galé coberta com um pano verde, para se confundir com a vegetação, chega a S. João da Foz e vai sozinho ao castelo de Gaia, disfarçado de peregrino, com o rosto pintado para parecer um mouro (daqui a «marca» do herói), esperando poder vingar-se de Alboazer com a ajuda de Aldora.
Ramiro não sabe, porém, como o ódio pode crescer no espírito de uma mulher traída: «No me as tu amor, pois d’aquy leuaste Ártiga, que mais preças de mim», observa a rainha depois de ter reconhecido o falso peregrino com a ajuda de um anel. E denuncia o marido ao seu inimigo.
Todavia, com falso arrependimento, Ramiro consegue enganar o adversário e escapar à morte, obtendo o socorro dos seus. E a história conclui-se com a matança dos mouros e a «exemplar» punição da rainha traidora, às mãos do seu próprio filho. No diálogo entre Aldora e Ramiro, o autor desta redacção (provavelmente o próprio Pedro) mostra uma surpreendente finura psicológica. No conto, porém, é o grande espírito cortês do antagonista que aparece exaltado e assume um relevo excepcional. Com efeito, Alboazer rapta a rainha apenas para reagir a uma provocação e, quando vê o inimigo aparentemente arrependido e em seu poder, não tem coragem para fazer-lhe mal:
  • «― Este homem rrepemdido he de seu peccado; mais ey eu errado a elle que elle a mym; gram torto faria em o matar, pois se poem em meu poder ―».
Só depois das insistências da rainha é que o mouro se convence a condenar Ramiro, e não sem que lhe tenha concedido a satisfação de um último desejo. E é exactamente esta sua magnanimidade que lhe será fatal, pois Ramiro pretenderá tocar o proverbial como com que chamará os seus. Pois bem: frente a uma história tão complexa e sabiamente arquitectada, a redacção sucinta aparece limitada ao episódio central, o da expedição cristã ao castelo de Gaia para libertar Aldora. O compilador não se preocupa, todavia, em dar um motivo para o rapto da rainha, que fica aqui sem nome «Este rey Ramiro seue casado com huma rainha… e pois lh’a filhou rey Abencadão». Nem muito menos procura conferir dignidade ou espírito cortês à figura do antagonista, a quem é ingenuamente reservado um papel de prepotente e pouco inteligente. Só a engenhosidade do herói deve ser exaltada, a sua habilidade em desembaraçar-se da situação difícil em que se encontrava por meio de um estratagema». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, CV Camões, Biblioteca Breve, volume 38, série literatura, 1979.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT