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Os Contos dos Cronistas
«Mas o conto justamente
mais conhecido do Nobiliário de Pedro é, talvez, a chamada Lenda de
Gaia, chegada até nós em duas redacções, inseridas no segundo e no quarto Livros
de Linhagens, várias vezes analisada pelos romanistas e ultimamente por
Manuel Rodrigues Lapa.
Trata-se de um
verdadeiro conto cavaleiresco derivado do poema alemão-antigo Salmon und
Markolf , cuja intriga reencontramos também na chanson de geste do Bastard
de Bouillon, recentemente editada por Robert F. Cook. É um conto de amor e
aventuras, centrado na audácia do herói que se apresenta só, humildemente vestido,
no castelo do inimigo que lhe raptara a mulher, e nas reacções contraditórias
desta última.
As duas redacções do
conto divergem em relação a elementos não marginais, porque a versão mais
reduzida (a do segundo livro) se refere, em substância, a um dos muitos exempla
misóginos sobre a perfídia das mulheres, enquanto a mais rica (a do Nobiliário
de Pedro) oferece uma análise aguda da psicologia dos personagens ao mesmo
tempo que nos transporta para um ambiente inequivocamente cortês. Convencido de
que a segunda redacção representa uma ampliação da primeira, realizada pelo
próprio Pedro com uma consciência literária mais desenvolta, Lapa designa com a
letra A a versão resumida e com a letra B a ampliada. Só que esta hipótese, que
coincidia com a minha primeira impressão sobre as relações entre os dois
textos, é contrariada por uma análise que valorize a lição de Rychner sobre as recomposições
populares e as degradações de transmissão pela memória.
Na sua forma mais
complexa, o conto apresenta uma série substancialmente linear de funções
essenciais. Em primeiro lugar o amor «por ouvido», tipicamente cortês, do rei
Ramiro ‘ouuyo fallar da fermusura e bomdade de hũua moura’; a falsa proposta de
amizade ao irmão da rapariga, antigo adversário, destinada apenas a «remover a falta
inicial», vencendo a sua recusa «fez com elle grandes amizades, por cobrar
aquella moura»; o rapto da jovem, realizado graças à intervenção de um
ajudante miraculoso, neste caso o mago Aaman, o qual «per suas artes tirou-a hũua
noite dõde estava e levou-a aas galees…», o nome alusivo (segundo o costume
medieval) que o rei impõe à moura depois de a ter baptizado, um nome que, como observa
justamente Rodrigues Lapa, trai uma origem germânica «e pos-lhe nome Ártiga,
que queria tanto dizer naquel tempo castigada e emsinada e cõprida de todollos beẽs»; a ira e o desejo da
desforra de Alboazer Alboçadam que rapta a rainha Aldora, mulher de Ramiro, para
vingar o ultraje sofrido; a empresa audaz do rei que com a sua galé coberta com
um pano verde, para se confundir com a vegetação, chega a S. João da Foz e vai sozinho
ao castelo de Gaia, disfarçado de peregrino, com o rosto pintado para parecer
um mouro (daqui a «marca» do herói), esperando poder vingar-se de Alboazer com
a ajuda de Aldora.
Ramiro não sabe, porém,
como o ódio pode crescer no espírito de uma mulher traída: «No me as tu amor,
pois d’aquy leuaste Ártiga, que mais preças de mim», observa a rainha depois de
ter reconhecido o falso peregrino com a ajuda de um anel. E denuncia o marido
ao seu inimigo.
Todavia, com falso arrependimento,
Ramiro consegue enganar o adversário e escapar à morte, obtendo o socorro dos
seus. E a história conclui-se com a matança dos mouros e a «exemplar» punição
da rainha traidora, às mãos do seu próprio filho. No diálogo entre Aldora e
Ramiro, o autor desta redacção (provavelmente o próprio Pedro) mostra uma
surpreendente finura psicológica. No conto, porém, é o grande espírito cortês
do antagonista que aparece exaltado e assume um relevo excepcional. Com efeito,
Alboazer rapta a rainha apenas para reagir a uma provocação e, quando vê o
inimigo aparentemente arrependido e em seu poder, não tem coragem para fazer-lhe
mal:
- «― Este homem rrepemdido he de seu peccado; mais ey eu errado a elle que elle a mym; gram torto faria em o matar, pois se poem em meu poder ―».
Só depois das insistências da rainha é que o mouro se convence a condenar
Ramiro, e não sem que lhe tenha concedido a satisfação de um último desejo. E é
exactamente esta sua magnanimidade que lhe será fatal, pois Ramiro pretenderá tocar
o proverbial como com que chamará os seus. Pois bem: frente a uma história tão
complexa e sabiamente arquitectada, a redacção sucinta aparece limitada ao
episódio central, o da expedição cristã ao castelo de Gaia para libertar Aldora.
O compilador não se preocupa, todavia, em dar um motivo para o rapto da rainha,
que fica aqui sem nome «Este rey Ramiro seue casado com huma rainha… e pois
lh’a filhou rey Abencadão». Nem muito menos procura conferir dignidade ou
espírito cortês à figura do antagonista, a quem é ingenuamente reservado um
papel de prepotente e pouco inteligente. Só a engenhosidade do herói deve ser exaltada,
a sua habilidade em desembaraçar-se da situação difícil em que se encontrava
por meio de um estratagema». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística na
Idade Média Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, CV Camões, Biblioteca
Breve, volume 38, série literatura, 1979.
Cortesia de Instituto
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