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«Subordinando o nosso encontro ao tema do "socialismo do futuro”,
os camaradas que o organizam não pretenderam decerto escrever mais um capítulo
de futurologia e ainda menos pensaram que tal tema pudesse ter ressonâncias de
provocação. E antes de mais a nós mesmos, socialistas presentes e do presente,
num contexto histórico-cultural em que a ideia e a realidade do socialismo é
aludida e pensada pelo discurso dominante do ocidente como precisamente ‘sem futuro’.
É claro que se pensasse que a perspectiva socialista e o socialismo
pertencem, no melhor dos casos, a uma utopia generosa, definitivamente
desmentida pelas experiências históricas do nosso século que tentaram inscrevê-la
na História, não estaria aqui senão para velar um cadáver invocado com tanta
complacência e ardor pelas carpideiras eufóricas do liberalismo universal
redivivo, pregado como a evidência de uma solução incontornável, imposta pelas
novas estruturas da produção hipercapitalista.
Infelizmente, neste momento, é como “no future” que o socialismo é
aludido num discurso liberal que não se apresenta apenas como mera cobertura de
uma prática económica para a qual se afirma não haver alternativa, mas como “discurso
cultural englobante”. Esse socialismo como ‘não-futuro’ seria a expressão de
uma nova racionalidade, paradoxalmente requerida ou imposta pela morte ou
descrédito teórico e prático daquela “racionalidade” que, desde o século XVIII
e da Revolução Francesa, subdeterminava a visão e o discurso fundador do socialismo
como a única adequada à compreensão do processo capitalista moderno e à solução
das contradições que lhe seriam inerentes. É esta visão oferecida como lugar-comum
e horizonte óbvio para a integração cultural da revolução económica a que
assistimos, revolução que não precisa sequer de actores por ser ela própria o
actor não-sujeito das transformações fulgurantes e incontestáveis do ponto de
vista do fim a que se destinam, que precisa de ser examinada para que seja
pensável qualquer ‘futuro’ para aquela perspectiva que o liberalismo declara
morta.
É claro que este triunfalismo do discurso liberal, cujo sucesso em
termos de publicidade está já contido na reiteração como evidência do seu
liberalismo, é também uma certa forma de resposta, ou punição, à antiga
facilidade com que o discurso socialista enterrava alegremente um ‘capitalismo’,
clinicamente visado como defunto pelo que continha de contrário à ‘racionalidade’
supostamente conhecida ou decifrada, não só do processo económico moderno, mas
da própria História.
Se a isso acrescentarmos que, para além da crença de ter decifrado
definitivamente os mecanismos económicos para os controlar à maneira de Marx ou
de outros socialistas, esse enterro podia até ser imaginado como ‘fácil’, este
revivalismo liberalista tem foros de lição.
É essa lição que deve ser meditada, não apenas exorcizada pelas críticas,
ainda muito imbuídas da antiga visão histórico-cultural de que a ideia
socialista era o coroamento ou, pela denúncia, necessária, mas excessivamente ‘moralista’,
das contradições, das falhas, dos insucessos caramente pagos desse agressivo
triunfalismo liberalista, ou assim chamado.
Para imaginar o espaço que não é ainda o seu, ao menos na versão
socialista que aqui nos reúne, para imaginar esse ‘futuro’ que sarcasticamente
nos é apresentado no discurso liberal como ‘passado’ e passado pouco grato, é
necessário hoje confrontar-nos com essa ‘realidade’, com essa evidência de um
projecto liberal que não se limita apenas ao exemplo, talvez não muito probante
para os europeus, da América de Reagan, mas à Inglaterra de Thatcher e, em
última análise, à Europa dos ‘Doze’ onde já estamos imersos. Não é apenas com a
indignação ou as encantações, nem com o mero testemunho da nossa
boa-consciência socialista, que se abrirá esse futuro para o projecto que
representamos». In Eduardo Lourenço, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da
História?, Ensaios Políticos, Gradiva, 2009, ISBN 978-898-616-310-5.
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