Pintura de Eduardo Malta
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Os Sinais da ‘Renascença Portuguesa’
O Dom da Vida
«O prefixo ‘re-‘ chama-se ‘prefixo vivo’. A sua primitiva forma foi ‘red-‘,
que, na época clássica, aparece antes de palavra iniciada por vogal, como nessa
belíssima e altíssima forma verbal transitiva ‘redamo’ (“as, are”) que significa
retorno de um dom: pagar amor com amor. Amor com amor se paga. O verbo
substantivo é ‘amo’ (“avi, atum”), que supõe uma relação de um para outro, sem recepção necessária
do efeito da relação. Diversamente, ‘redamo’, valorizado pelo prefixo vivo, vem
a constituir o que os latinos designavam por receber o que se dá, receber o dom
gratuito ao outro cedido, a “retributio”, a qual se encontra figurativamente
concebida pelos gregos no “bios”, o arco da vida. O arco retrai e assume a
dinâmica, o arco distende-se e gera movimento, dando o que recebe, e recebendo
o que dá.
Sendo amor um substantivo de categoria verbal, por isso que o
designamos abstracto, o substantivo amor é de si mesmo verbo, movimento, acção
e efeito. Na expressão “ter amor”, se é verdade que o substantivo ‘amor’ dá a
dignidade qualificada ou predicada ao verbo auxiliar ‘ter’, é também verdade
que o substantivo, já de si mesmo verbal, junto do ‘ter’, perde alguma força,
como se ‘amor’ fosse inócuo, sem o ‘ter’. Ora, na genealogia, que é ontologia,
do substantivo, todo o verbo é sem equívoco: amor é amar. O prefixo ‘re-‘'tornar-se-ia
desnecessário, porque a ideia de movimento integral, com processo e regresso,
torno e retorno, atribuição e retribuição, dom e recebimento, posse e partilha,
já se encontra infusa no próprio verbo substantivo. A inserção do prefixo ‘re-‘,
‘red-‘ no verbo, ou substantivo qual este, serve para sintetizar em forma didáctica
simples o que, na catequese do amor, teria de se explicar aos aprendizes, através
de circunlóquio ou definição. ‘Redamo’ é uma forma enfática de ‘amo’, mas
significa, de mente inteira, o mesmo que ‘amo’: o acto de receber no acto de
dar, em que se recebe tanto mais quanto mais se dá, de onde o que
verdadeiramente ama a si mesmo se dá, e não coisa por ele. O que de tal forma
ama, que a si mesmo se oferta em sacrifício cruento, esse é o que ama. O
presente, a lembrança, a oferta cousal, podem exprimir o amor, mas não podemos
comparar a oferta de um ramo de flores à oferta da vida por amor. Ambos os
gestos exprimem o amor, só que, num caso, o amor é expresso por algo que não
lhe é necessário, e, noutro caso, o amor. exprime-se consigo mesmo, com isso
sem o qual não é o próprio amor.
Descemos à terra dos homens e das palavras, onde falecem o Amor e o Verbo.
E, logo, o prefixo vivo ‘re-’, sem intrinsecamente perder o ‘quid’ ou ‘potestate’
que o afirma, assume a multiplicidade significante: movimento para trás (v. g. ‘recedo’),
regresso, repetição e contrariação (v. g. ‘reacção’). O prefixo vivo é pouco
estimado por quem ignora que, na ordem natural, ele tem figura no gesto de
colocar na terra a semente com esperança de a colher. A relação sementeira /
colheita está toda em ‘re-‘: o regresso da semente. cem por uma, ao que, na
esperança, a deu à terra». In Pinharanda Gomes, A Teologia de Leonardo Coimbra,
Guimarães Editores, Colecção Filosofia e Ensaios, Lisboa, 1985.
Cortesia de Guimarães Edt./JDACT