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«Todos os que ou por simples
curiosidade ou por interesse profissional dirigirem a sua atenção para esta Crónica
sentirão, decerto, um grande prazer intelectual convivendo por meio duma linguagem
ingénua, simples, mas profundamente eloquente, com um dos mais legítimos, mais perfeitos,
e mais cavalheirosos representantes do Portugal doutras eras.
É impossível percorrer estas
páginas sem se sentir comovido diante de tão grande e bela figura. É aos 13 anos
que Nuno Álvares entra na cena política de Portugal, sendo apresentado pelo pai
na corte, então residente em Santarém.
O pai, Álvaro Gonçalvez Pereira,
era Prior do Crato, não tendo obstado os votos, que ainda moço fizera, a que fosse
o progenitor de trinta e dois filhos. A sua situação, o seu nome, a sua fortuna,
marcavam-lhe lugar aparte, sobremaneira honroso e preponderante, na direcção dos
negócios do pais. Seu avô passara parte duma mocidade aventureira em estudos na
universidade de Salamanca. E foi da cidade salamanquina que trouxe, quando ainda
certamente não sonhava com a mitra de Braga, o filho, a quem tão larga acção estava
destinada na vida nacional já por si, directamente, já sobretudo, pelo filho ilustre,
o undécimo, de que era o tronco. A mãe de Nuno Álvares pertencia também á nobreza
do reino, vivendo como tal na corte do rei Fernando.
Tão preclara ascendência
dava desde principio ao moço fidalgo, entre o fervilhar de ambiciosos e
intriguistas, que constituíam a corte dos últimos reis da primeira dinastia, um
lugar inconfundível. A flor da altura, como apelidavam a formosa e leviana D.
Leonor, pousaria nele os seus olhos embriagadores e penetrantes, indiferentemente.
Menor atenção lhe ligaria ainda o rei Fernando. Mas uma missão, à primeira vista
bem simples, ia fazer recair sobre ele olhares perscrutadores, na esperança ilusória
de desvendar o mistério do futuro, que lhe estava reservado.
O reino achava-se numa singular
e periclitante situação. A cada momento guerrilhas espanholas invadiam em diferentes
pontos o reino, talando e assolando tudo por onde passavam. Era um sobressalto
continuo, que obrigava os habitantes das vilas acasteladas a viverem quase constantemente
encerrados entre os muros sombrios das suas terras. Os que vinham aos campos à
labuta da vida, eram, inúmeras vezes, tomados de surpresa, roubados e cativos ou
mortos.
Nem crianças, nem velhos
eram poupados. Os animais constituíam sempre a melhor parte da presa. Essas multidões
de inimigos, a pé ou de cavalo, numerosas ou não, caíam de improviso como um raio
fulminante e destruidor, de noite por entre as sombras, ou ao romper de alva, ou
durante o dia, quando todos se entregavam quer aos trabalhos, quer aos folguedos
e às distracções das suas festas.
A Santarém havia chegado
a noticia de que o exercito inimigo marchava sobre Lisboa. Seria verdade? Que forças
levaria? Era preciso sabê-lo. A diligência oferecia algum risco, pelo imprevisto
de uma traiçoeira emboscada.
O prior do Grato encarregou
de o saber dois dos seus filhos, Nuno Álvares Pereira e Diogo Álvares Pereira com
outros cavaleiros e foi o primeiro que, á volta, satisfez a curiosidade natural
de todos informando do que haviam observado.
Como dissemos, Nuno Álvares
tinha nesta época 13 anos, mas a sua virilidade está demonstrada por este simples
facto, que acabamos de enunciar, pois não é de crer que o pai o sujeitasse a uma
prova exigindo destreza no montar a cavalo, coragem, sangue-frio, decisão e audácia,
se não visse o bom resultado que se poderia esperar das qualidades que exornavam
o filho. O rosto comprido, os cabelos louros, e aquela vivacidade de olhar notada
em todos os velhos cronistas, davam aquele imberbe infante um aspecto de
encantadora simpatia, que fez acordar na assembleia que o escutou nos paços
reais a mesma ideia, “armá-lo cavaleiro!”
E D. Leonor logo, “como molher
que era muito paçãa e de boa palavra”, declarou ao rei que ela escolhia Nuno Álvares
para seu escudeiro, desejando ser ela própria e não outrem quem o armasse tal.
E foi, destino insondável
das coisas! O arnês e a armadura, que haviam sido, quando mais novo, do Mestre de
Avis, que serviram agora à sagração deste seu irmão de armas, entre os quais um
dia a intriga palaciana quase ia cavando um abismo.
Foi naturalmente então que
se soube dos cuidados e esmero, que os pais de Nuno haviam posto na direcção do
seu espirito, formando-o no ideal da valentia, da bravura e da galhardia, que distinguiam
os mais afamados cavaleiros das Ordens lendárias medievais.
Era sobretudo a historia
dos cavaleiros da Távola-Redonda que entretinha a imaginação de todos quantos na
guerra viam a mais nobre causa, à qual se devia sacrificar vida e honra. E porque
estava imbuído destas ideias e sabia como os mais ilustres cavaleiros haviam encontrado
na virgindade do seu corpo uma fonte prodigiosa de força invencível é que opôs relutância
em se casar.
Uma estrela despontava no
seu horizonte, ainda de luz ténue e frouxa, mas ele temia que ela se não erguesse
esplendente de brilho e claridade. Que força misteriosa, que atração singular e
indefinida, dirige os destinos dos homens e dos seres em geral?
Venceu a insistência de
todos onde se opunha a resistência de um só. Nuno Álvares casou com uma nobre senhora,
D. Leonor Alvim, possuidora duma avultada fortuna, proveniente já de seus pais,
já da herança do marido, que morrera pouco depois do matrimonio, sem usar (socorro-me
aqui das palavras do frade Sant'Anna) das faculdades deste sacramento, ou por
observância dalguma virtude particular, ou por defeito da natureza, segredo que
a intacta senhora ocultou até ás segundas bodas.
Desta união nasceram dois filhos, que morreram na flor da idade e uma filha,
D. Brites, que depois casou com Afonso, 1º duque de Bragança, filho de João I, tornando-se
o tronco duma descendência ilustre de testas coroadas e outras de alta prosápia,
não só em Portugal, como em quase toda a Europa». In Mendes dos Remédios, Chronica
do Condestabre de Portugal Dom Nuno Alvarez Pereira, Lymen, França Amado, Subsídios
para o estudo da História da Literatura Portuguesa, XIV, Coimbra, 1911.
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