sexta-feira, 8 de junho de 2012

Elogio da Loucura. Erasmo. «Sem o auxílio dele, todo o povo dos numes poéticos, e digamos com maior audácia, até mesmo os grandes deus, não teria existência, ou pelo menos passariam muito mal de saúde. Aquele que exercitar a ira de Pluto nem sequer com o auxílio de Palas poderá ficar salvo»



jdact e cortesia de wikipedia

 Fala a Loucura
«Já sabeis o meu nome, ó homens... Que epíteto acrescentar? Qual, se não o de muito loucos! A deusa da Folia não pode qualificar mais honestamente os seus mistos. Mas não sabeis muito bem como fui gerada, e é isso que vou tentar expor-vos com a boa ajuda das musas.
Não procedo do Caos, nem do Orco, nem de Saturno, nem de Júpiter, nem de nenhum desses deuses obsoletos e poeirentos. Sou filha de Plutos, gerador único dos homens e dos deuses por muito que custe a Homero, a Hesíodo e ao próprio Jove. De um só gesto, hoje como ontem, ele transtorna todas as coisas sagradas e profanas; é ele que tudo arbitra: guerra, paz, governo, conselhos, tribunais, comícios, conúbios, pactos, alianças, leis, artes, distracções, trabalhos... falta-me já o fôlego!... Numa palavra ,administra os negócios públicos e privados de todos os mortais.
Sem o auxílio dele, todo o povo dos numes poéticos, e digamos com maior audácia, até mesmo os grandes deus, não teria existência, ou pelo menos passariam muito mal de saúde. Aquele que exercitar a ira de Pluto nem sequer com o auxílio de Palas poderá ficar salvo. Pelo contrário, quem tiver a protecção dele, pode atentar contra a sumidade de Jove e dos raios fulminantes. Ta1 é o meu pai, de que me orgulho. Não me extraiu do seu cérebro, como Jove extraiu a tétrica e façanhuda Palas, mas gerou-me no seio da mocidade, que é de todas as ninfas a mais bela e a mais festiva. Não houve entre meus pais a triste ligação conjugal, de que só poderia nascer um ferreiro coxo, como Vulcano, mas, o que é muito mais agradável, puro comércio amoroso no dizer do nosso Homero. Não julgueis que procedo do Plutos, meio cego e decrépito que Aristófanes nos representa, mas do Plutos íntegro e cálido de juventude e, não só de juventude, mas também do néctar abundante e puríssimo que bebera no festim dos deuses.

Se perguntais qual é a minha terra natal, visto que a nobreza depende hoje principalmente do lugar onde a gente profere os primeiros vagidos, dir-vos-ei que não foi a errante Delos, nem nas ondas do mar, nem nas grutas azúreas, mas nas ilhas Afortunadas onde as colheitas não são precedidas de sementeiras e de cultura. Labor, senectude, morbo não existem ali; nos campos não se encontram asfodelo, malva, squilla, lupinum, fava ou plantas inúteis; mas de todos os lados encantam a vista e deliciam o olfacto plantas como moli, panaceia, nefrentes, amaracus, ambrósia, lótus, rosa, violeta, jacinto, enfim, o horto de Adonis. Nascida entre tantas delícias, não comecei a vida a chorar, logo me ri para minha mãe. Não invejo ao poderoso filho de Cronos a cabra nutriz, porque me alimentaram de seus seios duas ninfas encantadoras, a Embriaguez, filha de Baco, a Rusticidade, filha de Pan. Vede-as aqui no grupo das minhas companheiras que vos apresentei, se quiserdes, mas proferindo o nome delas em grego». In Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, tradução de Álvaro Ribeiro, colecção Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1987.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT