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Gnosticismo
«Como muito bem observa Dalila da Costa, ‘Tudo levará a crer
que seria o desaparecimento actual da parte esotérica no catolicismo, uma das
causas preponderantes que afastaria Fernando Pessoa da sua religião confessional’,
motivando a ‘procura desta parte do seu conhecimento secreto e reservado’,
noutras formas de espiritualidade características do ‘esoterismo cristão’, ou
do gnosticismo cristão, ou hermetismo cristão da ‘Ordem do Templo’ e da ‘Fraternidade
dos Rosa-Cruz’. É claro que a “gnose cristã”, melhor o “gnosticismo cristão”
(para não o confundir com as doutrinas de um Clemente de Alexandria, de um
Orígenes ou de Ireneu de Lyon, mas próximas da norma triunfante), tem, do
Cristo, uma perspectiva muito diferenciada, relativamente ao Cristianismo das
grandes Igrejas e denominações (Catolicismo, Ortodoxia, diversas correntes
protestantes, etc.). É verdade que Fernando Pessoa recebeu da teosofia (via “A Doutrina
Secreta” de Blavatsky) a noção de que a personagem de Cristo foi construída em
cima de um guerrilheiro judaico em revolta contra o opressor que foi preso e condenado
e crucificado um século antes da nossa era, na localidade de Lida, entre
Jerusalém e Jafa. Como Pessoa escreve na obra “Subsolo”:
- ‘Os evangelhos são somente dramatizações ou, em outras palavras, cristianizações, da tragédia de Lida. São rituais dramáticos, e os três primeiros evangelhos, os chamados sinópticos, são primeiras redacções, só no Quarto Evangelho está acabada a dramatização, e postos os selos mágicos. Por isso, para o Católico verdadeiro, são dipensáveis os outros evangelhos’. E mais adiante: ‘Dada a tragédia de Lida, os Demiurgos ergueram o Mártir em Verbo’.
Fernando Pessoa dá exemplo desta transposição do homem-mártir
para o Deus-mártir no seguinte trecho do “Átrio” que embora longo, decidimos
transcrever devido à sua importância, o qual ele intitula “Ordens do Átrio”, do
“Claustro e do Templo: seus mistérios, iniciações e rituais”. Suponhamos que os
Mestres ou Sacerdotes de uma Ordem do Templo, de posse, como tais, de uma
verdade divina, e suponhamos que essa verdade é a do Verbo incarnado e
sacrificado para a redenção do Mundo. Suponhamos, ainda, que esses sacerdotes,
de posse dessa verdade real e não simbólica, vivem num mundo pagão, crente nos deuses
múltiplos da religião grega ou romana. Suponhamos, mais, que esses mestres da
doutrina secreta querem comunicar aos que o mereçam, por provarem que merecem,
a doutrina secreta de que são senhores. Formarão para isso Mistérios, ou
Iniciações. E, na formação do ritual desses Mistérios, procederão da seguinte
maneira. Buscarão, primeiro, entre os deuses pagãos qual é aquele cuja história
possa conformar-se, como a sombra ao corpo que a projecta, à vida e à morte do
Verbo. Encontrarão, por exemplo, Baco, em cuja história divina há analogias
evidentes com a do Verbo incarnado, ainda que em nível diferente, que é o que é
preciso. Redigirão uma fórmula em que, eliminando os acidentes que perturbem a
semelhança, consigam dar, na história de Baco, por símbolo e analogia, a
história do Verbo. E esta fórmula, uma vez encontrada, chamar-se-á a Fórmula do
Transepto. Nela está obtido o segredo supremo da Ordem ou Mistério a criar, mas
o verdadeiro segredo está guardado por eles, altos iniciadores, pois o que vão
transmitir como verdade suprema nesse mundo pagão e ainda uma sombra da
verdade.
Feito isto, prosseguem. E buscam então uma figura, real ou
mítica, para quem possam transpor os incidentes, não já da vida e da morte do
Verbo, mas da vida e da morte de Baco. Qualquer figura servirá, desde que nela
não haja baixeza, e o que com ela se passa possa atrair de uma maneira indirecta;
e será preferível uma figura, ou inteiramente mítica, ou de quem tão pouco
conste na história, que tudo que se queira se lhe possa sem risco ser atribuí do.
Para essa figura transpõem os pormenores da vida e da morte de Baco, em maneira
translata, isto é, a figura não pode ser de um Deus, nem de qualquer modo
revelar que oculta a de Baco. Haverá mais íntimo afastamento entre esta figura
e a de Baco, que entre a de Baco e a do Verbo. Obtida esta figura, faz-se a equivalência da sua vida e morte,
com a vida e a morte de Baco; “e é em torno desta figura, duplamente simbólica,
que se escreve o ritual”. Assim, todo o ritual é o símbolo de um símbolo, a
sombra de uma sombra. E é a esse ritual, que por iniciação se comunica aos
candidatos, que se chama a Fórmula do Limiar”.
Para bom entendedor...
Em síntese, acrescenta Pessoa: ‘O Cristo (...) não existe
senão simbolicamente; é substancialmente simbólico. Cristo (..) é um mito na
sua própria realidade; é real na proporção em que é mítico. É só símbolo, mas
só símbolo de si-próprio...’. Isto conduz a uma concepção cósmica de Cristo,
mais ampla, que integra e completa não só os deuses e os mistérios das antigas
religiões, mas também a concepção “humanizada” de Cristo».
In José Manuel Anes, Fernando Pessoa e os Mundos Esotéricos, Ésquilo
2008, ISBN 978-989-8092-27-4.
Cortesia de Ésquilo/JDACT