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De acordo com o original
São Carlos
«Entretanto o mais original,
o mais pantafassudamente original de quantos artistas teem pisado aquelle palco
glorioso, foi decerto il cavaliére de Beneventano! Il barone Beneventano! Um galant’uommo,
como se diz em Itália.
Affabilissimo, delicadíssimo,
suavíssimo, cantando como ninguém a musica rossiniana, ‘il mio bravo interprete
Beneventano! dizia delle Rossini, correctíssimo, affectadissimo, e paspalhissimo!
Beneventano era um ‘gentleman’
emproado, mas era um ‘gentleman’.
Cantando, era um artista.
Andando, era um nababo.
Conversando, era um paladino.
Gesticulando, era um acrobata.
Vestindo, era uma caricatura.
E...
Vestindo, gesticulando, conversando,
andando, cantando, era sempre um charlatão.
Charlatão de talento, charlatão
com merecimento, mas charlatão. Ares de Falstaf, com um quê de Prud’homme, outro
quê de Don Quixote, e um quê também de Roberto Macário. Só um chimico poderia bem
examinar de que singulares segredos se compunha aquelle ‘macassar’.
Porque era um ‘macassar’!
No reclame, na fama, no brilho, na suavidade, no oleoso, na importância…
«Ó sublime macassar!» diz
Byron no ‘D. João’. A guarda roupa d'este ‘dio del canto’ era assombrosa. Tinha
setenta casacos, e vinte e dois paletós. Só em colletes novos, renovava o
painel das onze mil virgens!
O nosso conhecimento fez-se
de um modo curioso. Eu escrevera muitas vezes a seu respeito dando-lhe o louvor
de que era digno, mas sem a foguetada de elogios a que os artistas vivem habituados
na imprensa. Os meus folhetins, e n'esse tempo eu estava só em campo, e a ‘Revolução
de Setembro’ era o único jornal que tinha revista critica da semana, cahiram-lhe
em graça, e constava-me, ora por um ora por outro, que o divino Beneventano me fazia
as melhores ausências.
De uma occasião, intendeu
talvez que isso não era bastante, e recorreu a um expediente curioso. Em nos
encontrando no Passeio Publico, eu sosinho ou com algum amigo, elle com sua mulher,
uma ingleza enxertada em italiana, baixinha, branca, brilhante, e em numerosa companhia
ás vezes de artistas ou de ‘diletanti’, que se recreavam em fazer com elle a ‘passeggiata’;
em nos encontrando, já elle dizia para o seu rancho, indicando-me bizarramente
á sua illustre comitiva:
- - Il nostro sympathico!
Eu fazia-me corado, ficava
sem saber se devia tirar o chapéu a agradecer, e ia seguindo o meu caminho n'uma
vaidosa perturbação. D’alli a dois dias, viamo-nos outra vez, e, sem comprimento,
sem paragem, sem mais tir’te nem guard’te, Beneventano deixava cair magestaticamente
de seus sublimes lábios estas palavras, meu enlevo e minha gloria:
- - Il nostro sympathico!
Eu tinha vinte annos; e,
quando elle me disparava esta amabilidade á queima-roupa, deitava umas olhadelas
á mulher, que era lindissima, em que se me iam os vinte annos todos. No dia de um
folhetim a propósito da ‘Semiramis’, o plumoso… não, o encasacado cantor, foi a
minha casa. Grande conversação, grandes ‘shake-hands’, e brava, e ‘mille
grazzie’, e ‘tanto gentile’; ficámos com uma amisade de pedra e cal.
N’uma tarde húmida d'esse
inverno, estando em sua casa e querendo vir para a minha, oppôz-se elle galhardamente…»
In Júlio César
Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria
Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of
Toronto.
Cortesia de Livraria Ed. Mattos Moreira/Bordalo Pinheiro/JDACT