jdact e cortesia de joserodrigues
«Refeito e aconchegado, relaxado e repuxado para trás, as pernas bens
separadas, para dar lugar e vez ao resto do corpo, o Garcia obrigava-me agora a
guinar à esquerda, para me apontar as "caleiras", onde a cal era
produzida, e, mais ao lado, os restolhos dos castelos de madeira, que, com terra,
dava o picão, tições amortecidos ou acendalhas.
Olhei, parado, para a minha frente, para um conjunto de nodosos e enrugados
troncos, agarrados à terra, rachados e esgalhados, quase desertos de roupagem,
amputados, escaqueirados e desengonçados pelo peso da idade, como que a
lamentarem-se da verdura dos meus anos e da inocência da minha juventude, que
se deixava seduzir pela velhice daquelas árvores, que já tinham vivido o seu
tempo, e agora ali estavam pousadas, ligadas à terra por alguma seiva restante.
Marcou-me aquela imagem, que me filosofava capacidades e valências dos
que, tendo sido idos, ainda hoje nos estão expectantes, aos olhares das
gerações, desafiadores à voragem dos tempos, provocadores extáticos de códigos
de conduta, que sabem ser rigorosamente cumpridos.
E, ao vê-las assim tão venerandas, tão dignas da sua depauperada velhice,
penou-se-me a alma, quando a lembrança me trouxe à minha presença a figura da
minha mãe, estremosa, velhinha, ferida na asa da vida pelas resmas dos anos,
cheia de suaves serenidades e de eternas perenidades, com o regaço sempre
abundante de torrentes de ternuras, que lhe extravazavam todos os açudes de
mercês e de reconfortos, dádivas que acolhia em delicado e especioso cesto fino,
onde também se relicavam as arcas das virtudes e as emoções bordadas a fios de
ouro, qual sacrário de intimidades filigranadas de linho, de que apenas as
deusas podiam e sabiam fiar, em dobadouras rectangulares ou oitavadas. Ou, por
via dos pedais e dos sons matraqueados do tear com que se fabrica a mnemónica
das memórias ou, longe no tempo, a acidez plangente das saudades.
Grande era a saia da minha mãe, sempre preta e alongada, de bainha por
ela costurada, como que remate em obra feita, decorada com silvas discretas e simples,
por ela desenhadas, para o seu retém e resguardo. Lindo o seu avental, com que
colhia e guardava, da natureza das coisas, os frutos amadurecidos da sabedoria
e da beleza ou as afectuosidades generosas dos gestos. De blusa, à lavadeira,
de corações ramalhados e refulgentes, à maneira da Bretanha ou da Irlanda, que
os navegadores de Viana, das rotas a norte, trouxeram para as mondadeiras das
veigas do Rio Lima .
Valendo mais, muito mais, a redacção superior que deixou escrita, em letras
góticas ou ogivadas, pintadas de vermelho carmim a debruar a trinta preta da
china, documento tão solene e nobre, que apenas o damasco e a seda podiam
envolver, em invólucro policromado, pela mão de algum calígrafo poeta chinês.
Navegando assim, o Garcia, impressionado, olhou-me e sugeriu adiantar
caminho, não sem antes me apontar para uma casinha pequena, modesta, caiadinha
de branco, com um postigo a um metro do chão, a servir de janelo, ombreirado
pelas largas faixas pinceladas de azul, como grosso caixilho, que lhe fazia o
tamanho maior e que impedia, segundo os antropólogos, a entrada do espírito do
mal.
Era uma construção simples, rectangular, com o telhado de duas águas,
de meia cana, perpendicular à estrada, paradigma poético da arquitectura
popular alentejana, que me seduzia pela beleza do simples, sem volumes a mais.
Havia uma porta na outra ponta da casa, que eu, agora, de perto, admirava, também
debruada do mesmo azulão, já desbotado». In Aníbal Belo, Carta de Marvão,
Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT