quarta-feira, 27 de junho de 2012

Carta de Marvão. Aníbal Belo. «Navegando assim, o Garcia, impressionado, olhou-me e sugeriu adiantar caminho, não sem antes me apontar para uma casinha pequena, modesta, caiadinha de branco, com um postigo a um metro do chão, a servir de janelo…»


jdact e cortesia de joserodrigues

«Refeito e aconchegado, relaxado e repuxado para trás, as pernas bens separadas, para dar lugar e vez ao resto do corpo, o Garcia obrigava-me agora a guinar à esquerda, para me apontar as "caleiras", onde a cal era produzida, e, mais ao lado, os restolhos dos castelos de madeira, que, com terra, dava o picão, tições amortecidos ou acendalhas.
Olhei, parado, para a minha frente, para um conjunto de nodosos e enrugados troncos, agarrados à terra, rachados e esgalhados, quase desertos de roupagem, amputados, escaqueirados e desengonçados pelo peso da idade, como que a lamentarem-se da verdura dos meus anos e da inocência da minha juventude, que se deixava seduzir pela velhice daquelas árvores, que já tinham vivido o seu tempo, e agora ali estavam pousadas, ligadas à terra por alguma seiva restante.
Marcou-me aquela imagem, que me filosofava capacidades e valências dos que, tendo sido idos, ainda hoje nos estão expectantes, aos olhares das gerações, desafiadores à voragem dos tempos, provocadores extáticos de códigos de conduta, que sabem ser rigorosamente cumpridos.
E, ao vê-las assim tão venerandas, tão dignas da sua depauperada velhice, penou-se-me a alma, quando a lembrança me trouxe à minha presença a figura da minha mãe, estremosa, velhinha, ferida na asa da vida pelas resmas dos anos, cheia de suaves serenidades e de eternas perenidades, com o regaço sempre abundante de torrentes de ternuras, que lhe extravazavam todos os açudes de mercês e de reconfortos, dádivas que acolhia em delicado e especioso cesto fino, onde também se relicavam as arcas das virtudes e as emoções bordadas a fios de ouro, qual sacrário de intimidades filigranadas de linho, de que apenas as deusas podiam e sabiam fiar, em dobadouras rectangulares ou oitavadas. Ou, por via dos pedais e dos sons matraqueados do tear com que se fabrica a mnemónica das memórias ou, longe no tempo, a acidez plangente das saudades.

Grande era a saia da minha mãe, sempre preta e alongada, de bainha por ela costurada, como que remate em obra feita, decorada com silvas discretas e simples, por ela desenhadas, para o seu retém e resguardo. Lindo o seu avental, com que colhia e guardava, da natureza das coisas, os frutos amadurecidos da sabedoria e da beleza ou as afectuosidades generosas dos gestos. De blusa, à lavadeira, de corações ramalhados e refulgentes, à maneira da Bretanha ou da Irlanda, que os navegadores de Viana, das rotas a norte, trouxeram para as mondadeiras das veigas do Rio Lima .
Valendo mais, muito mais, a redacção superior que deixou escrita, em letras góticas ou ogivadas, pintadas de vermelho carmim a debruar a trinta preta da china, documento tão solene e nobre, que apenas o damasco e a seda podiam envolver, em invólucro policromado, pela mão de algum calígrafo poeta chinês.
Navegando assim, o Garcia, impressionado, olhou-me e sugeriu adiantar caminho, não sem antes me apontar para uma casinha pequena, modesta, caiadinha de branco, com um postigo a um metro do chão, a servir de janelo, ombreirado pelas largas faixas pinceladas de azul, como grosso caixilho, que lhe fazia o tamanho maior e que impedia, segundo os antropólogos, a entrada do espírito do mal.
Era uma construção simples, rectangular, com o telhado de duas águas, de meia cana, perpendicular à estrada, paradigma poético da arquitectura popular alentejana, que me seduzia pela beleza do simples, sem volumes a mais. Havia uma porta na outra ponta da casa, que eu, agora, de perto, admirava, também debruada do mesmo azulão, já desbotado». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT