sábado, 16 de junho de 2012

Carta de Marvão. Aníbal Belo. «E mais à frente, na Escusa, onde o Garcia decretou apeadeiro na venda do Curado para se delongar, entre copinhos pequenos, em filosofias e linguísticas, informando-me que o nome do lugarejo não era português, mas castelhano, pronunciado à açoriana, onde o “u” é falado em “iu”»



jdact e cortesia de joserodrigues

«Era a convergência para o zénite. Quem terá sido o arquitecto bem sucedido daquela paisagem assim produzida, carregada talvez de carga hermética e demandatária? Obra de algum inspirado de qualquer ordem iniciática, que queria fazer daquele vértice o ponto ómega, afinal o encontro das muitas verdades procuradas na vida? Ou de algum seduzido de Teilhard de Chardin, para quem tudo o que se eleva converge?
Aqui à esquerda, apontava, com o olhar, ou ali mais acima, nesta terra de semeadura, encontraram os lavradores muitas moedas antigas, romanas. E os homens da história, com escavações, descobriram uma cidade romana soterrada, com caboucos de palácios, e com inscrições do tempo em que o poder de Roma se estendia até aqui, terras de Viriato. Coisa, em importantíssimo, muito superior a Conímbriga, declarava. Eu, ignorante daquela geografia e do seu recheio arqueológico, ia debitando arrefecimentos ao entusiasmo quente do meu ajudante, interiormente desvalorizando os exageros daquelas informações tão encomiásticas ao que por baixo daquelas tapadas e courelas estaria submerso.
Terras de semeadura hoje, terras de Ammaia ontem, onde talvez algum governador romano, Pilatos ou Cláudio, imporia o seu jugo, detentor de monopólios na extracção mineira, com que fabricar lanças e dardos, para novas batalhas e novas conquistas, novas dominações. E, ali ao lado, eu vogava, em velocidades impetuosas, na reconstrução do passado cristão, judeu, árabe e moçárabe, chamando à grande liça a personalidade de Marvan, padrinho de nome da Vila e dissidente do culto califado de Córdova.
E, pondo e repondo aqueles dados ausentes, diafanavam-se os espíritos etéreos naquela contextualidade serena e mansa, alimentada de deleites, que só a magia pode orquestrar.
Olhei, com veemência e força penetrante, à procura da sombra de algum gladiador, que me confrontasse o êxtase, misturado da contumaz malvasia da aragem, que era apetecida. Ou à procura de alguma escavadora que me descaboucasse o projecto do grande arquitecto Vitrúvio, enterrado no esquecimento, se não fora este subalterno à lembrança.
E mais à frente, na Escusa, onde o Garcia decretou apeadeiro na venda do Curado para se delongar, entre copinhos pequenos, em filosofias e linguísticas, informando-me que o nome do lugarejo não era português, mas castelhano, pronunciado à açoriana, onde o “u” é falado em “iu”.
Que este sotaque era originário da Bretanha francesa, que colonizou ou povoou a ilha de São Miguel, dos Açores. Teria sido desta ilha que o Intendente Pina Manique teria importado duzentas famílias, que se foram ali instalar e em Castelo de Vide, para compensar a abolição dos escravos, que, com a libertação, preferiram outras terras, a permanecer no Alentejo.
Aquele povoado escondido debaixo dos grandes e majestosos carvalhos e castanheiros sabia-me a aldeia gaulesa, ou a território celta, onde algum druida cultuava os seus deuses, que os romanos, vencedores na Ammaia, não conseguiram vencer aqui, como nas Gálias.
Aqueles grandes espaços, protegidos pelo feitiço daquelas enormes e enigmáticas sombras, só eram maculados pela luz atrevida, que conseguia, em alguma aberta, escapar para o chão, nele desenhando setas. Era a floresta ancestral, que alcobitava debaixo das suas vestes frondosas segredos e mistérios, onde o deus Pã morava escondido para aterrorizar os humanos, com a sua flauta a medrar medos. Talvez terreiro de danças, aquelas sombras, onde ao som do silêncio se escalavam harmonias.
Muito impressionado, acenei ao Garcia que a viagem ainda durava e a procissão ainda estava na igreja, ou no adro, o muito. Com um estalinho final da boca, que comecei a decorar, o palato, reconfortado, fez um esforço para se levantar e, a custo, começou a diminuir a distância que nos separava». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Com a amizade de JCM
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT