jdact e cortesia de joserodrigues
«Era a convergência para o zénite. Quem terá sido o arquitecto bem sucedido
daquela paisagem assim produzida, carregada talvez de carga hermética e
demandatária? Obra de algum inspirado de qualquer ordem iniciática, que queria
fazer daquele vértice o ponto ómega, afinal o encontro das muitas verdades
procuradas na vida? Ou de algum seduzido de Teilhard de Chardin, para quem tudo
o que se eleva converge?
Aqui à esquerda, apontava, com o olhar, ou ali mais acima, nesta terra de
semeadura, encontraram os lavradores muitas moedas antigas, romanas. E os
homens da história, com escavações, descobriram uma cidade romana soterrada,
com caboucos de palácios, e com inscrições do tempo em que o poder de Roma se
estendia até aqui, terras de Viriato. Coisa, em importantíssimo, muito superior
a Conímbriga, declarava. Eu, ignorante daquela geografia e do seu recheio
arqueológico, ia debitando arrefecimentos ao entusiasmo quente do meu ajudante,
interiormente desvalorizando os exageros daquelas informações tão encomiásticas
ao que por baixo daquelas tapadas e courelas estaria submerso.
Terras de semeadura hoje, terras de Ammaia ontem, onde talvez algum
governador romano, Pilatos ou Cláudio, imporia o seu jugo, detentor de
monopólios na extracção mineira, com que fabricar lanças e dardos, para novas
batalhas e novas conquistas, novas dominações. E, ali ao lado, eu vogava, em velocidades
impetuosas, na reconstrução do passado cristão, judeu, árabe e moçárabe,
chamando à grande liça a personalidade de Marvan, padrinho de nome da Vila e
dissidente do culto califado de Córdova.
E, pondo e repondo aqueles dados ausentes, diafanavam-se os espíritos
etéreos naquela contextualidade serena e mansa, alimentada de deleites, que só
a magia pode orquestrar.
Olhei, com veemência e força penetrante, à procura da sombra de algum
gladiador, que me confrontasse o êxtase, misturado da contumaz malvasia da
aragem, que era apetecida. Ou à procura de alguma escavadora que me
descaboucasse o projecto do grande arquitecto Vitrúvio, enterrado no
esquecimento, se não fora este subalterno à lembrança.
E mais à frente, na Escusa, onde o Garcia decretou apeadeiro na venda
do Curado para se delongar, entre copinhos pequenos, em filosofias e linguísticas,
informando-me que o nome do lugarejo não era português, mas castelhano,
pronunciado à açoriana, onde o “u” é falado em “iu”.
Que este sotaque era originário da Bretanha francesa, que colonizou ou povoou
a ilha de São Miguel, dos Açores. Teria sido desta ilha que o Intendente Pina
Manique teria importado duzentas famílias, que se foram ali instalar e em
Castelo de Vide, para compensar a abolição dos escravos, que, com a libertação,
preferiram outras terras, a permanecer no Alentejo.
Aquele povoado escondido debaixo dos grandes e majestosos carvalhos e
castanheiros sabia-me a aldeia gaulesa, ou a território celta, onde algum druida
cultuava os seus deuses, que os romanos, vencedores na Ammaia, não conseguiram
vencer aqui, como nas Gálias.
Aqueles grandes espaços, protegidos pelo feitiço daquelas enormes e
enigmáticas sombras, só eram maculados pela luz atrevida, que conseguia, em
alguma aberta, escapar para o chão, nele desenhando setas. Era a floresta
ancestral, que alcobitava debaixo das suas vestes frondosas segredos e
mistérios, onde o deus Pã morava escondido para aterrorizar os humanos, com a
sua flauta a medrar medos. Talvez terreiro de danças, aquelas sombras, onde ao
som do silêncio se escalavam harmonias.
Muito impressionado, acenei ao Garcia que a viagem ainda durava e a
procissão ainda estava na igreja, ou no adro, o muito. Com um estalinho final
da boca, que comecei a decorar, o palato, reconfortado, fez um esforço para se
levantar e, a custo, começou a diminuir a distância que nos separava». In
Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001,
ISBN-972-8184-66-2.
Com a amizade de JCM
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT