jdact
«Baltasar Sete-Sóis leva os ferros no alforge porque há
momentos, horas inteiras, em que sente a mão como se ainda a tivesse na ponta
do braço e não quer roubar a si próprio a felicidade de se achar inteiro e completo
como inteiros e completos se hão-de sentar Carlos e Filipe em seus tronos,
afinal haverá para os dois, quando a guerra acabar. A Sete-Sóis basta-lhe, para
seu contentamento, e desde que não olhe onde lhe falta a comichão que sente na
ponta do dedo indicador, e imaginar que está coçando com o polegar o sítio onde
lhe come. E quando esta noite sonhar, se a si próprio se olhar no sono,
ver-se-á sem que nada lhe falte e poderá apoiar a cabeça cansada nas palmas das
duas mãos.
Também por outra interesseira razão traz Baltasar os ferros
guardados. Aprendeu rapidamente que com eles postos, em particular o espigão,
lhe escusam a esmola, ou dão-lha sovina, ainda que a alguma moeda sempre
forçados pela espada que leva à cintura, descaída sobre a anca, apesar de que
espada toda a gente a usa, até os pretos, porém não com este perfeito ar de
quem aprendeu a servir-se dela, agora mesmo se for preciso. E se o número de
viajantes não equilibra a desconfiança causada por aquele vulto que no meio do
caminho, cortando a passagem, pede auxílio para um soldado a quem cortaram a
mão e só por milagre não a vida, se quem vem teme que a súplica possa mudar-se
em assalto, a esmola sempre cai na mão que resta, é o que vale a Baltasar, ter
ainda a mão direita.
Passado Pegões, à entrada dos grandes pinheirais onde começa
a terra de areia, Baltasar, ajudando-se com os dentes, ata ao coto o espigão,
que fará, urgindo a necessidade, as vezes de adaga, em tempo que foi esta proibida
por ser arma facilmente mortal. Sete-Sóis tem, por assim dizer, carta de privilégio,
e, duplamente armado de espigão e espada, mete-se ao caminho, na penumbra das
árvores. Matará adiante um homem, de dois que o quiseram roubar, mesmo
tendo-lhes ele gritado que não levava dinheiros, porém, vindo nós de uma guerra
onde vimos morrer tanta gente, não é este caso que mereça relato singular,
salvo ter Sete-Sóis trocado depois o espigão pelo gancho para mais facilmente
arrastar o morto para fora do caminho, assim ficando experimentados os préstimos
de ambos os ferros. O salteador safo seguiu-o ainda por meia légua entre os
pinheiros, por fim desistiu, e só de longe lhe lançou palavras de insulto e
maldição, porém, como quem não acreditava que umas empecessem e outras ofendessem.
Quando Sete-Sóis chegou a Aldegalega, estava anoitecendo.
Comeu umas sardinhas fritas, bebeu uma tigela de vinho, e, não lhe chegando o
dinheiro para a pousada, tão-só, à escassa, para a passagem amanhã, meteu-se
num telheiro, debaixo de uns carros, e aí dormiu, enrolado no capote, mas com o
braço esquerdo de fora e o espigão armado. Passou a noite em paz. Sonhou com o
choque de Jerez de los Caballeros, que os portugueses desta vez irão vencer porque
à frente deles avança Baltasar Sete-Sóis segurando na mão direita a mão
esquerda cortada, prodígio para que os espanhóis não têm escudo nem esconjuro.
Quando acordou, não havia ainda então luzeiro de madrugada no levante do céu,
sentiu umas grandes dores na mão esquerda, nem era para admirar, com um espigão
de ferro ali espetado. Desatou as correias, e, podendo tanto a ilusão, muito
mais sendo noite, e espessa a treva debaixo dos carros, não ver Baltasar as
suas duas mãos, não significava que não estivessem lá. Ambas. Aconchegou com o braço
esquerdo o alforge, enroscou-se no capote e tornou a adormecer. Ao menos
livrara-se da guerra. Com menos um bocado, mas vivo.
Na claridade do primeiro alvorecer, levantou-se. O céu estava
muito limpo, transparente até às últimas e pálidas estrelas. Era um bonito dia
para entrar em Lisboa, com bom tempo para lá, ficar ou continuar viagem, logo
veria. Meteu a mão ao alforge, tirou as botas arruinadas que em todo o caminho
do Alentejo nunca calçara, e calçasse-as ele nesse mesmo caminho teriam ficado,
e pedindo à mão direita habilidades novas, com o frouxo amparo que o coto,
ainda em primeira aprendizagem, podia oferecer, conseguiu acomodar os pés, se
pelo contrário não ia sacrificá-los em bolhas e roeduras, tão antigo era o
hábito de andarem descalços, em sua vida de paisano, ou, no tempo militar,
quando a impedimenta nem para jantar tinha sola, quanto mais para botas. Não há
pior vida que a do soldado». In José Saramago,
Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998,
ISBN 972-21-0026-2.
Cortesia de Caminho/JDACT