jdact
Santo Ofício e subdesenvolvimento
«O coração das vilas era a praça ou rossio: rossio-feira, rossio-mercado,
rossio-festa, rossio-assembleia, rossio-união e motim, rossio-procissão,
rossio-mastro, rossio-touros, rossio-carnaval e máscaras, rossio-poço
rossio-pelourinho, rossio-cadeia e casa da câmara, rossios da via-sacra e dos
actos da fé.
Dominando a praça, a mole de pedra da igreja matriz com –os santos olhando
dos altares, o canto ecoando nas. paredes pintadas e os mortos sob as lousas de
mármore, ou no adro, cristãos-novos muitas vezes separados dos cristãos-velhos.
A torre sineira com o seu novo relógio marcava as horas e as tarefas do dia. E
avisava: o Senhor está fora; há fogo. E se chorava os defuntos, também atroava
os montes com os gritos da festa ou alvoroçava e apelava com o estridor do
rebate.
Casas ricas, muitas delas de sobrado, ou casas brancas de poial, banco
e chaminé ladeavam o rossio. Das varandas e janelas penduravam-se as colchas
coloridas da festa, choviam flores e alcandoravam-se como em camarote donas e
donzelas para ver os touros, as festas do cavalo, as comédias, as máscaras, as
chacotas, as procissões diurnas e nocturnas com os flagelantes e esponjas de vinho
para enraivecer as feridas. Fora da respiração larga do rossio, o dédalo das ruas, ruelas e becos.
Uma das ruas Direita, quase sempre torta mas talvez Directa.
A muralha com as suas torres, portas e postigos travava as construções
de pedra e adobe marcadas com o verde das árvores nos quintais e açoteias. Aqui
e ali as casas pinchavam para fora das muralhas criando arrabaldes, por vezes
ricos, com a Rua dos Mercadores, a Rua da Videira e a Rua do Meio, como
acontecia em Avis.
NOTA: Estes nomes que constam da “Descripção Geográphica, Histórica da
Vila e Real Ordem de Avis” de Francisco Xavier do Rego mantiveram-se até aos
nossos dias. E se objectarem que a “Descripção” data de 1730, acrescentarei que
já em 1556 se mencionava a Rua dos Mercadores (“Direìtos Bens e Propriedades da
Ordem e Mestrado de Avis...”, Lisboa, 1950/3).
Intramuros, em praça ou rua própria, ficava a Misericórdia com a sua
igreja, as suas roupas negras de capuz, as suas tochas e no coro os bancos
honrados de espaldar dos irmãos da Mesa. Estes administravam a vida e a morte
no hospital, socorriam presos, órfãos, pobres, viúvas e defuntos.
A vila ou cidade contava com o celeiro: celeiro real em Serpa, celeiro
da vila em Monforte, celeiros de particulares com livros onde se registavam os
fundos dos depositantes. O celeiro não era apenas o armazém onde se guardavam
os grãos. Implicava a organização dos proprietários que administravam os
depósitos de cereais, providenciavam das sementes e emprestavam cereal e dinheiro,
o Celeiro Comum.
O pão, vida dos pobres, transformava-se no Corpo de Deus. Benziam,
beijavam, comiam, rilhavam as côdeas do pão cozido, apanhavam, beijavam,
devoravam as migalhas. Luís de la Penha atravessava-o com uma faca e um prego:
- Eu te esconjuro, pão, com Barrabás e Satanás e com Lucifer e com
Caifás!
Depois, as mãos abertas sobre o trigo: - Pão! Pela virtude que Deus em
ti pôs que me declares se há-de dar. Anda e dá uma volta. Não me mintas porque
o hei-de saber. Pão! Pula ousa! Pão! Pula ousa!
Havia os pelomes ou alcaçarias onde se tratavam os couros: alcaçarias
de Domingos Fernandes Teixeira em Moura, alcaçarias da Misericórdia em Serpa,
alcaçarias de Monsaraz e Avis fora das muralhas da vila, horta dos Pelomes em
Portalegre, a qual era de Pêro Gonçalves, o ‘Periquito’, rendeiro das sisas e
trapeiro que foi curtidor (ANTT, Inquisição de Évora, Processo nº 6376)». In António
Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668, Editorial Caminho, Colecção
Universitária, Lisboa, 1987.
Cortesia Caminho/JDACT