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As primeiras denúncias
Testemunho de mestre Simão contra Damião de Goes
«E disse mais ele Mestre Simão que, no mesmo tempo e na mesma cidade de
Pádua, e assim mesmo na cidade de Veneza, conversara com frei Roque d'Almeida,
frade da Ordem de S. Francisco, que, naquele tempo, andava em hábito de homem
secular, o qual frei Roque é irmão, a seu parecer dele testemunha, da mulher de
Jorge de Barros, feitor da Casa da Índia; e que, quando praticava com o dito
frei Roque, algumas vezes, era presente o dito Damião de Goes de que acima tem
dito, e que ambos de dois, a saber o dito frei Roque e Damião de Goes,
defendiam a seita luterana, e ele declarante disputava com eles e defendia a
nossa santa fé católica; e que ele declarante achava o dito frei Roque mais
contumaz e mais azedo em defender as coisas de Lutero.
E que lhe lembra a ele testemunha que praticou e disputou com o dito
frei Roque de “excommunicatione”, em que lhe parece a ele declarante que o dito
frei Roque a vinha anichelando; e também falavam de “gratia et de
predestinatione”, e que estas ditas coisas defendia o dito frei Roque, ao
parecer dele testemunha, conforme à opinião de Lutero. E que, em extremo, o
dito frei Roque louvava a doutrina de Lutero, dizendo que era boa doutrina.
E disse mais ele testemunha que, querendo um dia rezar suas horas, o
dito frei Roque lhe dissera que não era obrigado a rezar se despendesse o tempo
em ler pela sagrada Escritura, ou em outras coisas, e que sobre isso disputaram
ambos. E que, por derradeiro, o dito frei Roque ficou com a dita sua opinião e
que o dito frei Roque e assim o dito Damião de Goes, em suas palavras, desfaziam
e tinham em muito pouca conta as constituições e ordenanças da Igreja, tendo-as
em pouco.
E, sendo perguntado sobre que constituições da Igreja praticara demais
do que tem dito com os susditos que eles tinham em pouca conta, disse ele
testemunha que lhe parece que era “de delectu ciborum”, e assim sobre outras de
que ao presente não é lembrado. Que lembrando-lhe, o dirá.
E disse mais ele testemunha que lhe parece que o dito Damião de Goes
lhe emprestara um livro de Lutero sobre o “Eclesiastes”, e que ouviu dizer que
o dito frei Roque que, ao presente, está no mosteiro Enxobregas, segundo ouviu
dizer, se encontra muitas vezes com os frades da dita ordem sobre as coisas da
fé ou doutrina dela, segundo ele testemunha ouviu dizer a um frade que está, ao
presente, no mosteiro da Arrábida, cujo nome não sabia e que, as vezes que ele
declarante praticou com o dito Damião de Goes e com o dito frei Roque, em as coisas
e seita de Lutero, sempre os viu inclinados aos erros do dito Lutero. E ficaram
sempre na dita pertinácia e firmes em seus erros que da dita seita de Lutero
tinham.
E, sendo perguntado que pessoas estavam mais presentes ao tempo e às
vezes que ele declarante comunicava com os susditos frei Roque e Damião de
Goes, em as coisas e erros de Lutero, estando em Pádua, e assim em outras
partes, e se comunicou com os susditos os mesmos erros de Lutero, Colampádio e
outros hereges, disse que em Pádua algumas vezes estava presente um mancebo flamengo
que estudava na dita universidade, e pousava com o dito Damião de Goes, cujo
nome não sabe, o qual mancebo ele testemunha tem para si que também tinha as
mesmas opiniões de Lutero, como os sobreditos, pelos escárnios que lhe via
fazer e dizer dos prelados da Igreja.
E que, em Veneza, quando ele testemunha praticava e disputava com o
dito frei Roque sobre as coisas de Lutero, como dito tem, não estava ninguém
presente de que lembrado seja; e que, também ele declarante viu, na dita cidade
de Veneza, o dito Damião de Goes, mas que não é lembrado se praticou com ele
nas coisas de Lutero, como praticou em Pádua; e que não é ele testemunha
lembrado que, em outras partes, praticasse em as ditas coisas com os susditos,
e que, quando ele testemunha praticou com o dito frei Roque que lhe disse que
não era obrigado a rezar, como dito tem, estavam ambos sós, na pousada do dito
Damião de Goes». In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição,
Assírio & Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.
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