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O messianismo cristão
«A interpretação literal
deste texto deu origem, já nos primeiros séculos da era cristã, à seita dos
milenaristas ou quiliastas. Estes aguardavam a inauguração do Reino de Cristo
na Terra, o qual, por diversos motivos, tendiam a situar num futuro muito
próximo. Apesar de muito suspeito às autoridades eclesiásticas, o messianismo
conseguiu manter-se vivo, assumindo feições diferentes de acordo com a situação
religiosa, política e social dos períodos sucessivos. E ainda hoje existe (p.
ex., os adventistas). Uma das formas com que apareceu foi o de um milenarismo mitigado.
Os mil anos já não eram interpretados no sentido literal, mas simbólico,
passando a indicar um período de longa duração. E, coisa mais importante, o
Reino de Cristo havia de ser exercido indirectamente por um rei cristão. Esta
ideia foi adoptada pelo joaquimismo, movimento profético que surgiu na Itália
no decurso do século XIII e não tardou a espalhar-se pela Europa inteira. Era
uma vasta corrente de reforma, tanto da vida eclesiástica e moral, como da
organização política e social. Demorou a atingir Portugal, mas uma vez radicada
na terra lusitana, encontrou aí um solo fecundo para vicejar. O sebastianismo
é, por assim dizer, a sua fruta serôdia e, sem dúvida, uma das mais notáveis.
Joaquim de Fiore e o Joaquimismo
Dado que nem sempre se
faz a devida distinção entre a doutrina genuína de Joaquim de Fiore e o joaquimismo
posterior, parece-me oportuno dar aqui alguns esclarecimentos preliminares a
esse respeito. Joaquim de Fiore (c. 1135-1202), abade de um convento
cisterciense na Calábria, dividia a história em três fases sucessivas, ou, para
falarmos na terminologia do autor, em três «estado» (status): o do Pai,
o do Filho e o do Espírito Santo. O estado do Pai iniciou-se com Adão, começou
a frutificar em Abraão e terminou com Zacarias, o pai de São João Baptista.
Caracteriza-se pela imposição rigorosa de mandamentos exteriores, à qual corresponde,
da parte dos homens, o temor. O estado do Filho iniciou-se com Osias, rei de
Judá, século VII a.C., começou a frutificar com Jesus e deverá terminar por
volta de 1260. Caracteriza-se pela humildade do Verbo Encarnado, à qual
corresponde, da parte dos homens, a obediência confiante a leis ainda não completamente
interiorizadas. O estado do Espírito Santo iniciou-se com São Bento, começará a
frutificar por volta de 1260, e deverá terminar com a consumação dos séculos.
Caracteriza-se pelo amor e pela liberdade espiritual e as leis já não são
impostas nem propostas, mas livremente aceites, amadas e vividas. Como se vê, não
se trata de uma sucessão de três estados rigorosamente demarcados, mas de três
estados parcialmente coincidentes. O desenvolvimento da história é, em última
análise, a obra de um único Deus Trino.
Baseando-se nas listas
genealógicas da Bíblia e dando a cada geração a duração de trinta anos, Joaquim
conta, entre a primeira e a segunda frutificação, 42 gerações, isto é, 42 х 30
=1260 anos. Igual número de anos deverá decorrer entre a segunda e a terceira
frutificação. Desta maneira, o abade julgava-se capaz de predizer para o ano de
1260 a grande transfiguração da Igreja e da cristandade.
Cada um dos três estados
compõe-se de sete idades, analogamente aos seis dias da Criação seguidos do sábado,
e aos sete sigilos sucessivamente abertos pelo Cordeiro do Apocalipse. A
estrutura interna de cada uma das sete idades apresenta uma grande semelhança com
a da idade que lhe corresponde no estado anterior ou posterior. A cada
personagem e a cada facto ocorrente no estado do Pai correspondem, nos dois estados
seguintes, outra personagem e outro facto que representam o mesmo tipo. A
história repete-se, dentro de certo esquema cronológico, cada vez num plano superior.
A repetição não é idêntica, como a imaginavam alguns pensadores da Antiguidade,
mas tipológica. A figura de São Bento não é idêntica à do profeta Elias, mas a
obra do abade de Monte Cassino repete, num plano superior, a do ermitão do
Monte Carmelo. É uma repetição e, ao mesmo tempo, uma superação. Investigar
essas analogias ou «concórdias» é, para Joaquim de Fiore, a grande incumbência
do exegeta. Quem, munido desta chave, conseguir entrar na tipologia da
Escritura Sagrada será também capaz de entender o profundo significado da
história moderna.
Tal é, com a preterição
de inúmeros detalhes, a doutrina de Joaquim de Fiore. A sua concepção da
história marca uma censura no pensamento medieval, que até então, neste
particular, fora determinado sobretudo por Santo Agostinho. Joaquim admite dois
fins históricos:
- um situado além da história, a eterna bem-aventurança,
- e outro situado dentro do tempo histórico, o estado do Espírito Santo.
Assim a História vem a adquirir uma importância que nunca teve na Idade
Média, a qual lhe concedia um valor apenas instrumental, isto é, valorizava o
tempo histórico na medida em que nele se situam as decisões dos indivíduos
humanos sobre o seu destino definitivo, mas essas decisões são os resultados
imprevisíveis da misteriosa interacção da graça divina e do livre arbítrio humano.
Partindo de especulações teológicas, o abade calabrês introduziu a ideia do
progresso histórico, ideia que, com o tempo, se foi desligando do seu contexto original
e, uma vez completamente secularizada, acabou por se dirigir contra a Revelação
cristã. Semelhantes processos de secularização são bastante comuns na história
do mundo ocidental». In José Van den Besselaar, O Sebastianismo História Sumária,
Instituto Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve /Volume 110, Livraria
Bertrand, 1987.
Cortesia de CV Camões/JDACT