quinta-feira, 21 de junho de 2012

O Sebastianismo - História Sumária. José Van Den Besselaar. «Joaquim de Fiore (c. 1135-1202), abade de um convento cisterciense na Calábria, dividia a história em três fases sucessivas A História vem a adquirir uma importância que nunca teve na Idade Média, valorizava o tempo histórico na medida em que nele se situam as decisões dos indivíduos humanos sobre o seu destino definitivo»



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O messianismo cristão
«A interpretação literal deste texto deu origem, já nos primeiros séculos da era cristã, à seita dos milenaristas ou quiliastas. Estes aguardavam a inauguração do Reino de Cristo na Terra, o qual, por diversos motivos, tendiam a situar num futuro muito próximo. Apesar de muito suspeito às autoridades eclesiásticas, o messianismo conseguiu manter-se vivo, assumindo feições diferentes de acordo com a situação religiosa, política e social dos períodos sucessivos. E ainda hoje existe (p. ex., os adventistas). Uma das formas com que apareceu foi o de um milenarismo mitigado. Os mil anos já não eram interpretados no sentido literal, mas simbólico, passando a indicar um período de longa duração. E, coisa mais importante, o Reino de Cristo havia de ser exercido indirectamente por um rei cristão. Esta ideia foi adoptada pelo joaquimismo, movimento profético que surgiu na Itália no decurso do século XIII e não tardou a espalhar-se pela Europa inteira. Era uma vasta corrente de reforma, tanto da vida eclesiástica e moral, como da organização política e social. Demorou a atingir Portugal, mas uma vez radicada na terra lusitana, encontrou aí um solo fecundo para vicejar. O sebastianismo é, por assim dizer, a sua fruta serôdia e, sem dúvida, uma das mais notáveis.

Joaquim de Fiore e o Joaquimismo
Dado que nem sempre se faz a devida distinção entre a doutrina genuína de Joaquim de Fiore e o joaquimismo posterior, parece-me oportuno dar aqui alguns esclarecimentos preliminares a esse respeito. Joaquim de Fiore (c. 1135-1202), abade de um convento cisterciense na Calábria, dividia a história em três fases sucessivas, ou, para falarmos na terminologia do autor, em três «estado» (status): o do Pai, o do Filho e o do Espírito Santo. O estado do Pai iniciou-se com Adão, começou a frutificar em Abraão e terminou com Zacarias, o pai de São João Baptista. Caracteriza-se pela imposição rigorosa de mandamentos exteriores, à qual corresponde, da parte dos homens, o temor. O estado do Filho iniciou-se com Osias, rei de Judá, século VII a.C., começou a frutificar com Jesus e deverá terminar por volta de 1260. Caracteriza-se pela humildade do Verbo Encarnado, à qual corresponde, da parte dos homens, a obediência confiante a leis ainda não completamente interiorizadas. O estado do Espírito Santo iniciou-se com São Bento, começará a frutificar por volta de 1260, e deverá terminar com a consumação dos séculos. Caracteriza-se pelo amor e pela liberdade espiritual e as leis já não são impostas nem propostas, mas livremente aceites, amadas e vividas. Como se vê, não se trata de uma sucessão de três estados rigorosamente demarcados, mas de três estados parcialmente coincidentes. O desenvolvimento da história é, em última análise, a obra de um único Deus Trino.
Baseando-se nas listas genealógicas da Bíblia e dando a cada geração a duração de trinta anos, Joaquim conta, entre a primeira e a segunda frutificação, 42 gerações, isto é, 42 х 30 =1260 anos. Igual número de anos deverá decorrer entre a segunda e a terceira frutificação. Desta maneira, o abade julgava-se capaz de predizer para o ano de 1260 a grande transfiguração da Igreja e da cristandade.
Cada um dos três estados compõe-se de sete idades, analogamente aos seis dias da Criação seguidos do sábado, e aos sete sigilos sucessivamente abertos pelo Cordeiro do Apocalipse. A estrutura interna de cada uma das sete idades apresenta uma grande semelhança com a da idade que lhe corresponde no estado anterior ou posterior. A cada personagem e a cada facto ocorrente no estado do Pai correspondem, nos dois estados seguintes, outra personagem e outro facto que representam o mesmo tipo. A história repete-se, dentro de certo esquema cronológico, cada vez num plano superior. A repetição não é idêntica, como a imaginavam alguns pensadores da Antiguidade, mas tipológica. A figura de São Bento não é idêntica à do profeta Elias, mas a obra do abade de Monte Cassino repete, num plano superior, a do ermitão do Monte Carmelo. É uma repetição e, ao mesmo tempo, uma superação. Investigar essas analogias ou «concórdias» é, para Joaquim de Fiore, a grande incumbência do exegeta. Quem, munido desta chave, conseguir entrar na tipologia da Escritura Sagrada será também capaz de entender o profundo significado da história moderna.

Tal é, com a preterição de inúmeros detalhes, a doutrina de Joaquim de Fiore. A sua concepção da história marca uma censura no pensamento medieval, que até então, neste particular, fora determinado sobretudo por Santo Agostinho. Joaquim admite dois fins históricos:
  • um situado além da história, a eterna bem-aventurança,
  • e outro situado dentro do tempo histórico, o estado do Espírito Santo.
Assim a História vem a adquirir uma importância que nunca teve na Idade Média, a qual lhe concedia um valor apenas instrumental, isto é, valorizava o tempo histórico na medida em que nele se situam as decisões dos indivíduos humanos sobre o seu destino definitivo, mas essas decisões são os resultados imprevisíveis da misteriosa interacção da graça divina e do livre arbítrio humano. Partindo de especulações teológicas, o abade calabrês introduziu a ideia do progresso histórico, ideia que, com o tempo, se foi desligando do seu contexto original e, uma vez completamente secularizada, acabou por se dirigir contra a Revelação cristã. Semelhantes processos de secularização são bastante comuns na história do mundo ocidental». In José Van den Besselaar, O Sebastianismo História Sumária, Instituto Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve /Volume 110, Livraria Bertrand, 1987.

Cortesia de CV Camões/JDACT