quarta-feira, 27 de junho de 2012

As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961. Edila Gaitonde. «A sociedade colonial goesa obrigou-a a viver outras incomodidades: a censura por usar o “sari” das indianas; suspeita de traição que recaía sobre o marido; a não integração na sociedade colonial ou, pelo menos, na comunidade católica goesa»


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«Num estilo sereno e sem alardes, Edila Gaitonde deixa uma narrativa rara e preciosa. O ineditismo da sua história começa logo pelo incomum da sua situação: uma menina, vinda de um ambiente tradicional do Faial, que se enamora por um goês, para mais, hindu. E que, vencidas resistências familiares e sociais das famílias de um e de outro dos noivos, inicia, sem dramatismos nem militâncias, um percurso de vida que acumula transgressões. Um namoro de uma europeia com um não europeu numa sociedade com muitos traços de machismo e de racismo; um casamento civil, e misto, na embiocada Lisboa dos anos 50, e perante uma Igreja conservadora e intolerante; um almoço de boda no Forte de Peniche; uma rede de relações arriscadas com círculos de independentistas goeses, muito antes de a própria oposição anti-salazarista articular explicitamente a componente anticolonialista. Depois, do outro lado, um casamento censurável para as tradições de uma família brãmane; um esforço contínuo para ultrapassar a sua situação de estrangeira, de católica e de impura na família e no meio social do marido; a busca de uma vida profissional independente numa sociedade que, entre colonos e colonizados, entendia a vida da casa como a única ocupação natural das esposas; o gosto pela música ocidental, que ‘fazia dores de cabeça’ aos seus parentes hindus. A sociedade colonial goesa obrigou-a a viver outras incomodidades: a censura por usar o “sari” das indianas; suspeita de traição que recaía sobre o marido; a não integração na sociedade colonial ou, pelo menos, na comunidade católica goesa. E, finalmente, no próprio meio dos patriotas indianos, a sua presença não deixava de ser sentida como incómoda ou mesmo pouco fiável, porque a senhora Gaitonde era europeia, portuguesa, católica e com preocupações pessoais que não eram apenas a luta política.
Edila passa por tudo isto de uma forma também singular. Como se tudo fosse natural. Nem se lamenta sacrificadamente, nem se revolta dramaticamente, nem provoca militantemente, nem desiste facilmente. Assume, com serenidade e discrição que se diriam ‘orientais’, tanto as incomodidades como a sua superação. Tal como o marido, mas não seguramente só por influência do marido, Edila tem, nestas tensões entre modos de vida, uma posição de resistência leal. Não esconde a sua diferença, embora não faça alarde dela. Vive-a, leal e naturalmente, em ambientes hostis que se entrecruzam e sobrepõem. É portuguesa na Goa hindu; filo-indiana Goa dos colonos nacionalistas; é “outcasted” na sociedade bramânica; é ‘amigada’ para um seu conterrâneo dos Açores, o patriarca das Índias Orientais; é traidora nos meios salazaristas e, em geral, numa sociedade portuguesa então intoxicada de propaganda anti-indiana; é suspeita entre falsos “freedom-fighters”.
Se a exemplar figura do marido, Pundlik Gaitonde, personalidade ímpar no movimento anticolonialista goês, se destaca na narrativa, conferindo-lhe a natureza de uma importante fonte da história, a protagonista do livro é Edila Gaitonde, por muito longe que isso tivesse estado da intenção. É ela que, numa narrativa despretensiosa mas quase cinematográfica, nos vai guiando com leveza, ironia subtil e abertura de espírito pelos ambientes contrastantes que viveu. Mas, sobretudo, ao fazer isto desta maneira, vai-nos revelando a que tipo de abertura aos outros leva uma sensibilidade multicultural profunda. Donde vem esta sensibilidade? Não, neste caso, de experiências fundadoras e formadoras num ambiente cosmopolita, que não era o dos Açores nestes tempos de chumbo. Nem tão-pouco da formação ideológica ou de leituras teóricas.
Porventura, simplesmente de uma rara disposição da alma. Como as almas - ai de nós - não vêm assim de fábrica, o ambiente natal talvez tenha influído, mas de um modo menos esperado. Desencadeando, pelos processos subtis da nossa formação moral, uma inapercebida reacção ao fechamento do casulo açoriano; fechamento que o sentimento ou a inteligência tinham inconscientemente registado e reactivamente compensado, predispondo para uma natural aceitação das diferenças e para um também natural cuidado por elas. Ainda neste aspecto Edila, inteligente analista e eficiente guia, é também o singelo exemplo de uma virtude rara, a de ter uma alma grande». In António Manuel Hespanha
In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.

Cortesia de Editorial Tágide/JDACT