Pintura de Maluda, 1971,
1985
Cortesia de wikipedia
Não é fácil escrever
sobre toponímia quando se deseja ser rigoroso. César Videira, investigador atento,
deu conta dessa dificuldade num passo da sua Memoria Historica da Muito Notavel Villa de Castello de Vide.
Depois de abordar as diversas teorias referentes à origem da sua terra natal,
achou por bem registar:
- “Se as trevas espessas do passado não permitem ver clara a origem de Castelo de Vide, afigurase-me que outro tanto sucede relativamente à do seu nome. Donde veio ele? A resposta não é fácil. Tudo que possa dizer-se neste sentido não passa de simples suposições. Posto que não tenha fé em nenhuma delas, reproduzo-as contudo, para que, apreciando-se a sua plausibilidade, se escolha a que deve aceitar-se por mais provável. […]”.
Este artigo não andará
por caminhos muito diferentes. Apresentando nas suas linhas uma apreciação
poliédrica da solidez dos mitos, das especulações e das leituras etimológicas
que rodearam/rodeiam o nome “Castelo
de Vide”, ninguém espere no seu final afirmações dogmáticas baseadas em
crenças. Desejo apenas reflectir e partilhar essa reflexão, apresentar
hipóteses e os alicerces que as sustentam, encontrar explicações e manifestar
as suas forças e fraquezas. Com os anos que levo de leitor e de investigador da
nomeação espacial, já me habituei a concordar com o escritor francês Marcel
Proust, que considerava a toponímia uma ciência sem exactidão. Talvez por isso
seja tão fascinante.
Partindo dalguns autores
peninsulares (Galmés de Fuentes e Espírito Santo, por exemplo), cujos estudos
demonstram uma consciência superior no entendimento dos processos de formação
da toponímia antiga, neste pequeno trabalho terei em conta que a nomeação
ancestral dos lugares possui características invariáveis que só nos últimos dois
ou três séculos foram relativamente dissolvidas (sobretudo a partir do momento
em que a designação de uma parcela do espaço passou a ser vista como
instrumento de propaganda política ou de homenagem, justa ou injusta). Nenhuma
das suas linhas esquece, portanto, que:
- um topónimo, sendo produto da oralidade, tem sempre uma origem racional, distintiva e objectiva, nascida de evidências materiais ou sociais permanentes ou prolongadas, nunca acidentais ou esporádicas;
- as designações transformam-se ao longo do tempo, tornando-se obscuras quando a sua língua de origem cai em desuso;
- na sua evolução diacrónica, a nomenclatura dos lugares vai sofrendo reinterpretações, nas quais o falante metamorfoseia uma forma opaca (pertencente à língua em desuso) numa forma clara com som igual ou semelhante na língua do momento, ainda que tenha um significado completamente distinto do original;
- os topónimos, quando passados à escrita, podem sofrer uma intervenção exterior que os modifica na sua aparência, ao serem alterados por escribas que, com frequência, não são falantes dos dialectos locais;
- é possível que duas designações aparentemente iguais tenham tido origens diferentes e que dois nomes hoje distintos tenham nascido de uma mesma raiz.
Cortesia de wikipedia
A consciência destes
cinco pilares evita, só por si, muitos erros, inviabilizando leituras
apressadas e apenas baseadas numa vaga analogia fonética. Os topónimos antigos
devem, além disso, ser entendidos no seu contexto alargado. Reafirmo aqui que a
“nomeação de um lugar nunca pode
separar-se da geografia deste, da sua história e da sua mitologia”, bem
como das práticas sociais aí desenvolvidas. Daí que defenda, com outros
autores, que a sua interpretação só se poderá fazer com um mínimo de
fiabilidade se se usar um “método
etnológico” (ou “dos sistemas”)
que reúna os melhores contributos dos métodos “filológico” (também chamado “etimológico”) e “histórico”,
com contribuições vindas da Geografia, da Sociologia e da Antropologia.
Só o “método dos sistemas” permitirá a
apresentação de hipóteses certificadas, ainda que incertas e/ou supostas.
Desenvolvendo a proposta de Moisés Espírito Santo, penso que devem ser rejeitadas
quaisquer explicações que não possuam pelo menos duas correspondências, uma do
sistema linguístico e outra do sistema contextual, sendo obrigatoriamente uma
delas a correspondência fonética. A segurança da interpretação será tanto maior
quanto mais largo for o número de correspondências verificadas e/ou
verificáveis. No sistema linguístico poder-se-á
verificar qualquer destes fenómenos:
- correspondência fonética (o étimo antigo tem um som próximo do nome actual);
- correspondência vocabular (o topónimo integra-se numa “constelação de nomes”, numa relação de complementaridade semântica entre termos próximos no espaço);
- correspondência sinonímica (a divisão da propriedade pode ter originado uma multiplicação de palavras com significado próximo, numa mesma língua ou em línguas diferentes, ou a produção de diminutivos ou de aumentativos).
No sistema contextual, deve existir pelo
menos um destes fenómenos:
- correspondência geográfica (o topónimo diz respeito ao acidente natural onde se “localiza”);
- correspondência mitológica (há mitos ou lendas que certificam a explicação objectiva/racional ou que a reflectem);
- correspondência histórica ou arqueológica (o nome está ligado a factos comprovados por documentos ou por vestígios arqueológicos existentes no local);
- correspondência social (o designativo liga-se a práticas sociais ou rituais desenvolvidas no lugar).
Convém, entretanto,
lembrar que, até à entrada da televisão em todas as casas, os falares das nossas
aldeias e dos nossos campos nos permitiam dizer que em Portugal não se falava “português”,
mas “portugueses”, pelo menos dois: um erudito, derivado do latim com
contributos posteriores; e outro popular, quase paralelo, com traços de uma
maior ancestralidade. Terá sido este, aliás, que levou à criação de grande
parte dos topónimos antigos, ainda antes de existir a língua portuguesa.
Como uma suculenta sopa
de pedra, no caldeirão, fervente ao longo de vários milénios, se juntaram
ingredientes linguísticos diversos para dar origem ao caldo que ainda ouvimos
falar até há poucas décadas (hoje em perigosíssima, mas quiçá irremediável,
erosão). Não se sabe qual terá sido a água limpa inicial, mas sabe-se que aí se
foram depositando fonemas, palavras e estruturas vindas do Próximo Oriente
(fenício/hebraico), da Arábia (árabe dialectal), do Norte de África (púnico e
berbere), da Grécia e da Península Itálica (grego e latim). Sabe-se também que
fenício, hebraico, árabe e berbere são línguas pertencentes à mesma família
semita. Está provado que os berberes que atravessaram o Estreito de Gibraltar e
por aqui ficaram depois do século VIII falavam dialectos com origem fenícia-púnica
e o latim do Norte de África. Não há dúvidas de que mesmo o grego e o latim não
fecharam portas às influências vocabulares e de outra índole provenientes da
margem sul e oriental do Mediterrâneo».
In Ruy Ventura, A Vide e o seu Castelo,
e outros Topónimos da Terra de Cristovam Pavia, Fonte da Vila, Castelo de Vide,
História e Património, ta_rv_cv_toponimo, Pdf.
Cortesia de Fonte da Vila/JDACT