jdact e cortesia da fr
[…]
«Comecei de imediato a imaginar a colecção, a idealizar metodologias, a
tentar programar as minhas acções. Quando passados alguns dias me desloquei
finalmente a Portalegre e vi pela primeira vez a Colecção Sequeira, o choque
foi brutal e devo confessar que, apesar de ter visto algumas fotografias, nem
nos meus mais arrojados pensamentos cheguei perto daquilo que encontrei. Fui
invadida por uma sensação de desassossego e durante vários dias as imagens
retidas pelo meu primeiro olhar surgiam-me a cada instante, e o sono foi pouco tranquilo
durante várias noites. O desafio era bem maior do que supunha.
Mobiliário litúrgico, milhares de Cristos amontoados de uma forma quase
sinistra, num entrelaçar de braços, pernas e cruzes, literalmente ao monte, de
tal forma que se tornava difícil caminhar entre eles e passar de umas salas
para as outras. Inúmeras peças estavam cobertas de lixo, desperdícios e
envoltas em sacos de plástico, tecidos e caixas de cartão, sem qualquer tipo de
ordem, não sendo possível sequer definir o que tínhamos pela frente.
O portalegrense Rui Sequeira, homem devoto e de crenças, dedicou grande
parte da sua vida à religiosidade católica. Devido ao seu gosto pessoal pelas
artes e pelo coleccionismo e à proximidade com a vida religiosa local,
apreciava a arte sacra e apercebeu-se desde cedo que muitas peças eram
substituídas, devido ao seu processo natural de envelhecimento ou às alterações
de modas e gostos, e consequentemente abandonadas ou mesmo destruídas. Este
facto indignava-o e levou-o a assumir o papel de fiel depositário destas peças
"indesejadas" ou em fim de vida.
Desta forma juntou mais de seis mil peças de arte sacra, em
variadíssimos materiais, de várias dimensões e com exemplares do século XIV ao XX,
essencialmente esculturas, predominando as imagens de Cristo, não só por ser
uma representação de quem era particularmente devoto, mas também por existirem
em número muito significativo nesta região do país, por ser tradição fazerem parte
dos objectos essenciais no enxoval de qualquer noiva.
Tendo consciência das suas motivações torna-se mais fácil perceber este
conjunto e a forma como estava arrecadado. Provavelmente Rui Sequeira foi
"engolido" pela sua colecção, deixando de ter capacidade de resposta
para o tão grande número de peças que lhe chegaram às mãos. No total as peças
estavam distribuídas por seis salas, sendo as mais marcantes as três onde se
encontravam os crucifixos. Tornou-se evidente que de início houve algum
critério no armazenamento, os crucifixos foram colocados sobre bancadas
improvisadas, encostados à parede, em filas sucessivas e sempre com as imagens
de Jesus Cristo voltadas para fora, e as figuras que não tinham cruz foram
guardadas em caixas e cestas.
[…]
Este conjunto tem uma tal dimensão que mesmo que muitas peças
isoladamente não tenham qualquer valor estético, histórico ou material, formam
um todo que vale por si, como Colecção que deve ser preservada.
Em forma de conclusão devo acrescentar que esta experiência me marcou
para a vida, não só em termos profissionais, mas também, e principalmente, em
termos pessoais. Apesar de encarar as peças apenas como representações
escultóricas sem afectação religiosa, levei algumas semanas a conseguir estar
no espaço e conviver com a colecção de uma forma tranquila. A quantidade e o
"peso" das próprias imagens, a falta de luz eléctrica, o frio do
Inverno, o vento a entrar pelas inúmeras frinchas, o isolamento em que se
encontra a casa, não tornaram a tarefa fácil mas permitiram-me muitos momentosde
reflexão.
Por mais que filmada, fotografada e descrita, nunca será possível
transmitir a quem não esteve no local a sensação de tamanha experiência. Captaram-se
momentos, espaços isolados, mas nunca o todo, nunca a sensação de estar rodeada
de milhares de imagens de Cristo Crucificado. Não há forma de descrever o todo
e simultaneamente os pormenores que estavam em cada canto, os cheiros, os
ruídos, as sombras, a luz e a falta dela...» In Laura Portugal Romão, A Colecção
Sequeira - Do armazém à reserva, Fundação Robinson, 2008, Seminários Rede
Cultural, Promoção e valorização de património natural, arquitectónico e arqueológico-industrial,
Portalegre, Espaço Robinson, Junho 2012.
Cortesia da F. Robinson/JDACT