domingo, 10 de junho de 2012

A Mocidade de D. João V. Rebelo da Silva. «Aos doze anos media a altura de um homem razoável, e tinha a magreza de um galgo; depois dos vinte espigou de modo que fazia recear que nunca acabasse de crescer»


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«Quando muito, o padre-mestre inculcaria cinquenta anos, embora a certidão de baptismo, menos citada por ele do que as ordenações, adicionasse mais cinco ou seis à conta redonda. Apesar de gordo, os seus movimentos não eram acanhados nem desairosos, e a figura tinha mais de vistosa do que de esbelta. O rosto arredondado e cheio, graças a duas covinhas no meio das faces, espiritualizava-se com o riso; e a boca fina e chistosa dava-lhe grande animação. As mãos, bem tratadas e macias, e o pé sempre bem calçado e pequeno, não pareciam de frade. Já se vê, que se vivesse no século, podia contar com o voto feminino, voto absoluto em coisas de tanta importância.
Sem ler Lavater, notar-se-ia que a constante aplicação às letras sagradas e profanas, e o uso do púlpito, tinham gravado em ‘sua reverendíssima’ um cunho particular. As inflexões e os gestos do padre procurador ressentiam-se da exageração teatral, que se converte em segunda natureza para os que falam em público por muitos anos. Seria desempenada a sua estatura, se o trabalho do bufete a não houvesse curvado um pouco. O olhar teria mais viveza, e o sorriso mais agrado, se o primeiro não adormecesse tanto a miúdo, e se o segundo brincasse com menos ironia nos cantos dos beiços. A oscilação do lábio superior, alguma coiso grosso, e a das asas do nariz bastante vivas, mostravam que o frade doutor era menos humilde e paciente, do que pedia o seu estado monástico. Enfim, as grandes entradas de elevada e espaçosa testa, e a ruga de profunda reflexão cavada na fronte, acusavam a agudeza do espírito e do talento, como compensação dos defeitos de um carácter sincero, mas irascível e imperioso.
Mais gordo do que magro, mesmo até mais obeso do que gordo, as cores florescentes do seu rosto prestavam testemunho irrefragável à inclinação pelas doçuras da vida, e sobretudo pelos prazeres da mesa. Fr. João usava de barretinho curto, caído para a nuca. A provisão do desembargo do paço, enrolada na mão, servia-lhe de leque, ou de compasso, segundo a ira lhe fazia subir o sangue às faces, ou lhe descompunha o gesto em accionados violentos. Durante o diálogo que ouvimos, o padre-mestre tinha puxado e repelido o barretinho da nuca para a testa, e da testa para a nuca umas poucas de vezes, batendo o pé com ímpeto. Via-se que o reverendo batalhava com a ira, e que a cólera obscurecia, mais do que fora para desejar, este novo astro da doutrina teológica.
O segundo interlocutor era em tudo o antípoda do sábio jurisconsulto; trinta anos seriam a idade do milagreiro, se caras, como a sua, denunciassem idade possível, ou a deixassem apanhar em flagrante. Era um esqueleto desengonçado, com os ossos sempre em reacção contra a carne. Parecia um paradoxo da figura humana, desses a que a natureza logo quebra o molde, para não multiplicar as cópias.
Aos doze anos media a altura de um homem razoável, e tinha a magreza de um galgo; depois dos vinte espigou de modo que fazia recear que nunca acabasse de crescer». In Rebelo da Silva, A Mocidade de D. João V, volume I, Livraria Chardron de Lello & Irmão Editores Porto.

Cortesia de Lello & Irmão/JDACT