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A Sátira na Pregação do
século XIII
Sermões de Santo António
«Também os leigos
percorrem o mesmo caminho amaldiçoado. Avarentos e usurários, não passam de feras
que assaltam e devoram. Adoram o bezerro do ouro e andam pela estrada da morte.
São eles que se apoderam de tudo no mundo, empobrecem as igrejas e desnudam os
mosteiros. Malditos sejam, pois digerem os bens dos pobres, dos órfãos e das
viúvas, e deixam à fome os monges e cónegos regrantes. Se dão esmolas, está
nelas o sangue dos pobres. Contudo, o avarento é pobre. Não possui, é possuído.
Não é mal ter dinheiro. O mal está em servi-lo. Ai, a quantos religiosos cegou
a avareza, a quantos claustrais ela enfatuou, a quantos seculares ela mandou
para o Inferno!
Hoje em dia, reza-se.
Porém, tal oração anda muitas vezes adulterada com a «goma do dinheiro». E com
o dinheiro, nasce a soberba. Ambicionam cargos e esquecem-se de que pouca foi a
sua educação. Em termos do século XX, são eles os novos-ricos, os arrivistas de
sempre, que da vida antiga trazem o que é mau e deixam o que é bom. E o
pregador continua:
- «Quantos suportariam a pobreza, se depois lhes dessem a Espanha ou a França! Mas, por amor do reino dos Céus, nada fazem!»
Os religiosos pululam
nos mercados, litigam nos tribunais, compram, vendem, levantam, deitam abaixo, fazem
dum quadrado uma roda, convocam homens de leis, trazem testemunhas e estão
dispostos a fazer juras por uma coisa que não vale nada. Dizei-me, religiosos, vistes
essas demandas nos profetas ou nos evangelhos? Clérigos e bispos ligam mais às
decretais dos papas do que aos evangelhos. E se alguém comete um pecado mortal
em público, ninguém o corrige, ninguém o acusa.
A omnipotência do
dinheiro marcou toda a sátira da Idade Média, no púlpito, nos goliardos ou nos trovadores.
Dom Dinheiro mandava no mundo e uma poesia de expansão europeia, De Nummo,
chegou ao mosteiro de Alcobaça e foi adaptada, em Castela, pelo génio do
Arcipreste de Hita, no Libro de Buen Amor.
A Igreja não é só o clero.
Abrange também o povo. Ora, todos espremem os fracos e tiram dele o último ceitil.
O manto de púrpura, de que fala a Bíblia, simboliza os bens dos pobres, ganhos
«com muito suor e sangue». Vêm, depois, os soldados e os usurários das cidades
(burgenses) e tiram-lhes o que têm e que tanto sabe a sangue.
Chamam-lhes vilões, «mas eles é que são diabos vilões». E o clero, ai de quem
não lhe dá! Excomungam-no!
Lembramo-nos dos versos
de Gil Vicente, na Barca do Purgatório, quando o camponês diz que «bradão
co’elle / porque assoviou a hum cam / e logo a escomunham na pelle». Erasmo não
entra aqui para coisa nenhuma. Era uma torrente que vinha de longe e troava nos
púlpitos da Idade Média.
Bispos, abades e priores
andam atrás da vanglória, como ursos à volta dum cortiço, para lhe chupar o mel.
O auditório, pensamos nós, havia de rir-se com esta comparação, como se ria das
sátiras de Gil Vicente, o maior herdeiro da nossa Idade Média. Sátira para rir,
nos sermões de Santo António? Não bem isso. Uma espécie de amor e de humor
furioso.
Monges e frades, esses
homens abstinentes comem a carne dos seus irmãos, dilaceram-na com os dentes da
maledicência. Enfim, a sátira abrange todas as classes, entram nela todos os
vícios, faz rir, faz sorrir e faz doer, sobretudo ao falar do sangue dos
pobres.
Num sermão, Santo António utiliza a fábula da raposa, do lobo e da lua
no poço. Há religiosos, diz ele, que imitam o lobo e caem no poço da ambição
dos bens deste mundo, julgando que são eternos. E têm a sorte do lobo. Era um
conto engraçado e devia correr de boca em boca, mais desenvolvido, já se vê,
mil vezes repetido e mil vezes escutado atentamente». In Mário Martins, A Sátira
na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve,
volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Pdf,
1986.
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