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«Depois de vários dias de viagem incómoda, a comitiva chegou, finalmente,
a terras de Peñafiel. Já clareava quando a voz suave da ama, Maria del Carrión,
a despertou:
-Inês, Inês, desperta. Já se avista o castelo dos Manuel.
Ficou surpreendida com a expressão sorridente da ama. Logo de seguida,
percebeu o motivo. Maria tinha nascido em Quintanilla de Arriba, uma pequena
aldeia, mas o amor tinha-a levado para as brumas do Norte. Agora, viúva,
voltava à terra natal.
- Estás contente, ama. Regressas a casa.
- Estou contente por ti, minha menina. Castela é nobre e poderosa. Como
os fidalgos, escolhe aqueles que senta à sua mesa mas, uma vez abertas as
portas, dá-se sem reservas. Tenho a certeza de que esta terra te trará a
ventura que mereces e fará que se cumpra o teu grande destino.
- Falaste com a ‘meiga’, (bruxa galega) ama?
-É claro que sim, Inêsinha. Assegurou-me que um príncipe te amará pelo
teu colo de garça e pelos teus cabelos loiros, e que as tuas fontes virão a ser
cingidas por uma coroa real.
Inês sorriu e arredou a cortina da liteira. Por entre a bruma distinguiu
um pequeno casario de pedra avermelhada e, mais atrás, uma colina sobre a qual
se erguia a silhueta altaneira de um castelo.
- Maria, onde estamos? Parece um barco.
- Não é barco, menina, é castelo. Um bom navio de pedra com que se pode
navegar por mares de trigo e viver novas aventuras.
A luz rosada e nebulosa do amanhecer delineava o perfil da colina, de
modo que o castelo parecia emergir de um mar de nuvens e flutuar no ar.
Realmente, Inês não se enganara. A configuração do castelo fazia-o parecer um
navio de popa afilada, em que a torre de menagem fazia as vezes de vela
enfunada pelo vento.
- Parece ser vila rica, Maria. Tem muralhas e creio avistar igrejas e
conventos.
- Segundo me disse o meu amo, Pedro, teu pai, Peñafiel é um feudo da
família Manuel desde há várias gerações. Sempre que João Manuel consegue
afastar-se dos negócios do Estado e das artes da guerra, gosta de vir morar
naquele castelo, onde escreve os seus livros e comanda uma legião de amanuenses
e desenhadores de iluminuras que se dedicam ao trabalho de ampliar a
biblioteca.
- Nesse caso, o meu tio sabe de livros e de poesia.
- Sim, Inês, é voz corrente que o vosso tio gosta da pena e tem um
grande talento para as letras. A seu lado aprendereis mais de artes e latins do
que se tivésseis ficado na aldeia onde, infelizmente, só poderíeis ficar a
conhecer esconjuros de bruxas ou métodos de lavoura...
- Talvez. No entanto, Maria, é lá que tenho o meu pai, os meus irmãos e
desatando a chorar, a minha mãe enterrada.
- Logo vereis que D. Constança é boa companhia e, quanto ao infante, um
pai amoroso para ambas. Vamos, secai essas lágrimas e sorride. Ver-vos chegar
em pranto causará má impressão aos vossos benfeitores.
Assim falou a ama e com estas palavras se tranquilizou a alma de Inês.
À medida que se acercava da vila, a curiosidade de saber o que a esperava
substituía a nostalgia do que ia ficando para trás. Da liteira, entreteve-se a
contemplar o calmo fluir das águas do Duratón. Bem longe estava de saber que
seria outro o rio, o Mondego, o que, com o correr do tempo, seria testemunha
privilegiada dos dias mais felizes da sua vida. E, claro, tampouco podia
adivinhar as muitas e copiosas lágrimas que havia de verter nele. A comitiva avançou
pela estrada que, como uma grande serpente, se enroscava em volta da colina
coroada pelo castelo. O silêncio era praticamente absoluto e nada dava a
entender que por detrás daqueles muros havia vida. Duas sentinelas guardavam o
portão que dava para o pátio do castelo reservado aos cavalos. Tão firmes eram
as suas figuras, tão hierático o porte, que mais pareciam estátuas de pedra
colocadas junto dos robustos muros de alvenaria.
Foram eles quem, depois de ditos o santo e a senha combinados, deram passagem
aos viajantes». In Inês de Castro, María Pilar Queralt de Hierro, Editorial
Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-23-3081-7.
Cortesia de Editorial Presença/JDACT