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«Na origem da obra-prima
rosaliana está, portanto, o projecto de dar voz ao que é percebido como
expressão genuína do povo galego: seu lirismo. Seria, no entanto, um engano
crer que há nisto apenas um intento estético. No trecho transcrito do prólogo
dos Cantares gallegos, vislumbramos uma segunda dimensão de seu projecto:
se um poeta como Trueba cantasse as belezas e os costumes galegos, afirmava a
poetisa, a Galiza se ergueria até ao lugar próprio, o que demonstra um
propósito político no projecto rosaliano. O que significa cantar as belezas e
os costumes da Galiza, na própria língua galega?
Significa afirmar as
particularidades culturais e linguísticas da Galiza; significa, em última
instância, afirmar a singularidade do território galego, o lugar das belezas, e
a própria historicidade galega, residente na sua língua. A propósito deste
último elemento, vale transcrever um outro trecho do prólogo de Rosália, em que
a poetisa declara a necessidade de se "cantar as belezas da nossa terra
naquele dialecto suave e mimoso que querem fazer bárbaro os que não sabem que
supera as demais línguas em doçura e harmonia". Observe-se que, nestas
palavras, a escritora esboça uma hierarquia entre as diversas línguas,
dedicando o posto mais alto ao galego; hierarquia aliás fundamentada em uma
espécie de contraposição que situa, de um lado, a língua galega, portadora de
singulares "doçura" e "harmonia"; e de outro as demais
línguas, consideradas uniformemente como isentas de ambos os atributos. Para
Rosália, no entanto, estas qualidades singulares da sua língua materna possuem
uma origem determinada, situada na tradição, de onde o elogio, feito no mesmo
prólogo, à beleza dos cantos populares, um "arrulho incessante de
palavrinhas mimosas e sentidas"; se a língua galega é tão doce e graciosa,
afinal, é porque este é o modo galego de ser, o que também se deve às próprias
peculiaridades da terra galega, que alimenta e acalenta esta poesia:
- A poesia galega, toda música e vaguidade, toda queixas, suspiros e doces sorrisinhos, murmurando algumas vezes com os ventos misteriosos dos bosques, outras vezes brilhando como o raio de sol que cai sereninho por cima das águas de um rio lauto e nobre que corre sob os galhos dos salgueiros em flor, deveria ser cantada num espírito sublime e cristalino, se assim podemos dizer; uma inspiração fecunda como a vegetação que adorna esta nossa privilegiada terra; e, sobretudo, um sentimento delicado e penetrante, para dar a conhecer tantas belezas de primeira ordem (...)
Há um forte laço,
afinal, que une a terra ao povo, o povo à tradição, a tradição à língua, e,
finalmente, a língua à poesia, poesia esta que Rosália, em Cantares
gallegos, pretende honrar e reverenciar.
No empreendimento
pondaliano, por outro lado, assume uma dimensão essencial a valorização do mito.
Na já mencionada análise de David Miller, a função dos mitos é fundamental,
uma vez que eles asseguram que a comunidade nacional da qual um indivíduo faz
parte possui bases históricas sólidas e incorpora uma continuidade real através
das gerações; ademais, os mitos desempenham um papel moralizante, ao expôr para
os membros da comunidade as virtudes de ancestrais e encorajá-los a desenvolvê-las,
além de fortalecer seu senso de solidariedade e comprometimento mútuo. No projecto
pondaliano, a finalidade do mito era não apenas localizar o rasto histórico do
povo galego, mas também estabelecer fundamentos em nome dos quais reivindicar a
unidade cultural e política dos galegos, por eles considerados a "gente de
Breogán", sendo este o motivo do seu recurso ao Celtismo, fenómeno
cultural que surgira na Europa no início do século XVIII, com a publicação, em
França, da obra Antiquité de La nation et la langue dês ceifes, do abade
Paul Pezron. Em linhas gerais, a teoria de Pezron defendia que os franceses
seriam descendentes dos celtas, povo glorioso e heróico, bem como responsáveis
pela difusão da cultura céltica por outros países europeus, inclusive os
ibéricos Em reacção às ideias de Pezron, intelectuais peninsulares, como Pedro
e Rafael Mohedano e Juan Masden, passaram a defender que, na verdade, o
"berço" da cultura céltica seria a própria Península Ibérica, difundindo-se,
a partir daí, para outros países europeus, incluindo a França. Paralelamente,
uma outra versão da teoria surgia nas terras galegas: em 1838, o historiador
Xosé Verea e Aguiar, na sua Historia de Galicia, afirmaria ser a Galiza
o verdadeiro lugar de origem dos celtas, a partir de onde eles se alastraram
por toda a Europa.
Posteriormente, o já
mencionado Manuel Murguía, grande amigo de Eduardo Pondal, daria novo fôlego à
teoria, afirmando que, embora os celtas não fossem originários da Galiza, foram
seus conquistadores, num processo que acabaria por delinear, de forma
irrevogável, a identidade do povo galego.
Estas teorias tinham, decerto, uma finalidade específica: reinterpretar
certas evidências históricas (por exemplo, estruturas arqueológicas, como os
castros, vestígios de fortificações do tempo da ocupação romana, no território galego),
de modo a inseri-las num projeto de identidade nacional que diferenciasse a
Galiza das outras nações europeias, e da Espanha em particular».
In
Henrique Samin, A construção da Identidade Galega nos discursos poéticos de
Rosália de Castro e Eduardo Pondal, Conexão Letras, volume 2, número 2, 2006.
Eduardo Pondal
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