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«Nunca houve um túnel que ligasse as duas casas, passando por baixo da
rua. Não tinha havido, mas o mito fez com que passasse a haver na memória do
povo, que dá realidade mesmo às coisas que não existem. Era por ele que a dona
da Retrosaria passava, à tarde, para se ir encontrar com o Senhor. Não se pode
saber, agora que tanta conversa passou, o que se teria dado nesses encontros,
embora seja de crer que tivessem consumado o amor, e que isso tivesse provocado
a ira do Anarquista que, segundo a voz corrente, amava a dona da Retrosaria;
mas outros diziam que o Anarquista não demonstrava vocação especial para o
sexo, o que era visível pela sua atitude curvada sobre a página de anúncios do
jornal, ensimesmado na contemplação das letras, o que acabou por fazer dele o intelectual
da aldeia, capaz de ter uma opinião sobre tudo o que se passava no mundo. Isso
explica, de resto, a existência daquelas reuniões de fim de tarde, em que ele
era o centro da estranha Loja de homens do comércio, que para ali traziam os
seus problemas e, enquanto bebiam aguardente, punham a vida da aldeia e do
mundo em dia.
O mito, por outro lado, metamorfoseou a dona da Retrosaria numa figura
quase de cinema, como uma dessas vedetas de um filme de capa e espada, embora
mais baixa do que elas, mas nunca se
consegue saber o verdadeiro tamanho das vedetas de cinema porque há sempre maneira,
para um bom cineasta, de transformar uma mulher baixa numa beldade de
proporções nórdicas. Não teriam ficado fotografias dela, porque as poucas que
havia desapareceram depois do seu suicídio; mas não há dúvida de que era uma
mulher bem feita e que atraía os homens, o que se podia ver pela frequência com
que eles passavam à sua porta, espreitando para o balcão através das rendas da cortina
que a escondia da rua, ao que se acrescentava o seu cuidado em usar perfume, o
que era um trunfo naquele tempo em que não havia apelos da moda, e muito menos perfumarias
ou boutiques. Esse facto era um sinal de pecado, fazendo com que se perguntasse
para que é que uma mulher como ela precisaria de usar perfume, se não fosse para
se fazer notada dos homens, e sobretudo de homens que ocupavam um lugar
superior na escala social, o que implicava ter gostos requintados, sobretudo no
que se refere a questões do outro sexo?
No entanto, muito mais tarde, numa altura em que os herdeiros deram a
volta à casa para deitar fora as coisas velhas, que foram metidas em sacos de
plástico e atiradas para o caixote do entulho, apareceu uma grande fotografia dessa
mulher, num papel grosso e baço, de cor sépia, que apanhava o rosto e parte do
busto, com os ombros ainda destapados, numa pose provocante, embora os lábios
fechados não dessem a ver mais do que uma sensualidade reprimida, que só os
olhos, claros e de uma transparência que insinuava o abismo do desejo por
detrás deles, sugeriam. Ninguém deu pela importância histórica da fotografia,
embora aqui a palavra história se aplique apenas a um destino singular, ao que
os ombros seminus revelavam de uma abertura de costumes, e ao enigma que nascia
daqueles lábios fechados, tristes, que pareciam falar pouco, ou então traduziam
apenas a inquietação perante o fotógrafo, a expectativa angustiosa pelo ‘flash’,
que vem de uma máquina formada por um aparelho enorme e por um homem que mete
por cima da cabeça um pano escuro, num lugar que é também escuro e inquietante
como uma cripta». In Nuno Júdice, Vésperas de Sombra, Quetzal Editores, Lisboa
1998, ISBN 972-564-359-3.
Cortesia de Quetzal Editores/JDACT