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«É verdade que, entretanto, as situações equívocas se tinham resolvido: os maridos tinham legalizado as separações e, ao assumir os novos
casamentos, tinham-se desobrigado de ter de sustentar duas casas; e elas,
reduzidas à solidão doméstica, vivendo de rendimentos mínimos, e cada vez mais
parcos, quando não eram forçadas a ganhar a vida em ocupações menores, de
costura ou de empregos precários, começavam a desaparecer para a cidade
próxima, onde entravam em casas de carácter suspeito, onde recebiam senhores de
aparência respeitável, de quem se dizia que eram casados, mas cujas mulheres de
nada sabiam ou, mesmo que adivinhassem essa dupla ocupação dos maridos, fingiam
que nada sabiam, a não ser em alturas de crise, em que tudo explodia sempre
dentro do recato do quarto conjugal, só por vezes ouvido pelas criadas que
paravam no corredor, e era certo que a notícia iria correr toda a cidade no dia
seguinte. Chega então o Inverno. O vento traz as nuvens escuras do norte; os
dias, mais curtos, são percorridos por todas as tonalidades do cinzento; as
ruas esvaziam-se, como se a aldeia estivesse deserta, a partir do meio da manhã,
quando os vendedores deixam a praça. O único movimento que se vê é o dos
bêbedos habituais à entrada da taberna, empurrando-se em discussões que não
levam a nada. O barbeiro assoma à porta, de quando em quando, à espera de
clientes que não vêm porque, no Inverno, mais vale ter a cabeça protegida pelo
cabelo, quando há, embora também seja no Inverno que são mais frequentes as
epidemias de piolhos, trazidos pelos animais vadios que se acolhem às soleiras das
portas, a pedir comida, e são enxotados com o cabo da vassoura para o meio da
rua onde formam matilhas que se pegam em correrias, à noite, fazendo ecoar os
seus uivos por entre as casas.
É no Inverno que as luzes se apagam mais cedo. O sentimento da noite
impregna, então, os homens, obrigando-os a manter os olhos abertos na
escuridão, em busca dos pontos luminosos que não aparecem, nem mesmo de
madrugada, quando eles se poderiam esperar por entre as frinchas das madeiras.
Levantam-se às apalpadelas no ar frio, vestem-se depressa e põem-se a caminho
do trabalho, a pé até à paragem da camioneta que passa de hora a hora, o que
obriga a que se tenha de apanhar a primeira, sob pena de perder o dia e, nesse
caso, muitas vezes, o próprio emprego. Quem tem sorte são os que não precisam
de entrar a horas, ou os que não precisam de trabalhar e apenas mandam nos
outros: e que ficam na cama, onde o calor da noite se mantém por baixo dos
cobertores, fumando lentamente cigarros até que a luz se imponha por trás da
janela. Então, saem, atraídos por essa luz, como se ela fosse o único mistério
que tivessem de resolver na sua vida». In Nuno Júdice, Vésperas de Sombra,
Quetzal Editores, Lisboa 1998, ISBN 972-564-359-3.
Cortesia de Quetzal Editores/JDACT