sábado, 16 de junho de 2012

Vésperas de Sombra. Nuno Júdice. «O único movimento que se vê é o dos bêbedos habituais à entrada da taberna, empurrando-se em discussões que não levam a nada. O barbeiro assoma à porta, de quando em quando, à espera de clientes que não vêm porque, no Inverno, mais vale ter a cabeça protegida pelo cabelo»


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«É verdade que, entretanto, as situações equívocas se tinham resolvido: os maridos tinham legalizado as separações e, ao assumir os novos casamentos, tinham-se desobrigado de ter de sustentar duas casas; e elas, reduzidas à solidão doméstica, vivendo de rendimentos mínimos, e cada vez mais parcos, quando não eram forçadas a ganhar a vida em ocupações menores, de costura ou de empregos precários, começavam a desaparecer para a cidade próxima, onde entravam em casas de carácter suspeito, onde recebiam senhores de aparência respeitável, de quem se dizia que eram casados, mas cujas mulheres de nada sabiam ou, mesmo que adivinhassem essa dupla ocupação dos maridos, fingiam que nada sabiam, a não ser em alturas de crise, em que tudo explodia sempre dentro do recato do quarto conjugal, só por vezes ouvido pelas criadas que paravam no corredor, e era certo que a notícia iria correr toda a cidade no dia seguinte. Chega então o Inverno. O vento traz as nuvens escuras do norte; os dias, mais curtos, são percorridos por todas as tonalidades do cinzento; as ruas esvaziam-se, como se a aldeia estivesse deserta, a partir do meio da manhã, quando os vendedores deixam a praça. O único movimento que se vê é o dos bêbedos habituais à entrada da taberna, empurrando-se em discussões que não levam a nada. O barbeiro assoma à porta, de quando em quando, à espera de clientes que não vêm porque, no Inverno, mais vale ter a cabeça protegida pelo cabelo, quando há, embora também seja no Inverno que são mais frequentes as epidemias de piolhos, trazidos pelos animais vadios que se acolhem às soleiras das portas, a pedir comida, e são enxotados com o cabo da vassoura para o meio da rua onde formam matilhas que se pegam em correrias, à noite, fazendo ecoar os seus uivos por entre as casas.
É no Inverno que as luzes se apagam mais cedo. O sentimento da noite impregna, então, os homens, obrigando-os a manter os olhos abertos na escuridão, em busca dos pontos luminosos que não aparecem, nem mesmo de madrugada, quando eles se poderiam esperar por entre as frinchas das madeiras. Levantam-se às apalpadelas no ar frio, vestem-se depressa e põem-se a caminho do trabalho, a pé até à paragem da camioneta que passa de hora a hora, o que obriga a que se tenha de apanhar a primeira, sob pena de perder o dia e, nesse caso, muitas vezes, o próprio emprego. Quem tem sorte são os que não precisam de entrar a horas, ou os que não precisam de trabalhar e apenas mandam nos outros: e que ficam na cama, onde o calor da noite se mantém por baixo dos cobertores, fumando lentamente cigarros até que a luz se imponha por trás da janela. Então, saem, atraídos por essa luz, como se ela fosse o único mistério que tivessem de resolver na sua vida». In Nuno Júdice, Vésperas de Sombra, Quetzal Editores, Lisboa 1998, ISBN 972-564-359-3.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT