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«Na
edição da poesia lírica de Camões realizada por Azevedo Filho, o soneto “Em
quanto quis Fortuna que tivesse” apresenta o seguinte texto, estabelecido à luz
da tradição manuscrita em confronto com a tradição impressa (Camões 1987: 275):
Em
quanto quis Fortuna que tivesse
esperanças
de algum contentamento,
o
gosto de um suave pensamento
me
fez que seus efeitos escrevesse.
Porém,
temendo Amor que aviso desse
minha
escriptura a algum juízo isento,
escureceo-me
o engenho, com o tormento,
pera
que seus enganos não di[ss]es[s]e.
Ó
vós, que Amor obriga a ser sujeitos
a
diversas vontades, quando lerdes
num
breve livro casos tão diversos!
Verdades
puras são, e não defeitos;
e
sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis
o ent[en]dimento de meus versos.
É
um soneto de natureza proemial. Quando o emissor lírico tinha ainda esperança
de ser feliz, a vontade amorosa levou-o a escrever poemas em que ficavam
descritos os tantos efeitos que esse sentimento nele provocava. Todavia, Amor
logo temeu que tais versos pudessem revelar os seus enganos àqueles que, tendo
livre opinião, não se deixariam subjugar pelos afectos, e por isso decidiu
ofuscar o impulso do poeta com diferentes mágoas. O amante chama a atenção,
enfaticamente, de todos quantos estão dominados por um desígnio amoroso, e
indica, de seguida, que os poucos versos que irão ler contêm somente límpidas
verdades.
A
primeira quadra faz referência ao passado do amante, quando a sua ventura,
então favorável, lhe permitia ter confiança no alcance da satisfação que provém
da correspondência amorosa. Nessa altura, o emissor lírico, convertido em “autor
implicado” neste soneto como responsável fictício pela elaboração dos poemas,
sentia necessidade de cantar, através da escrita, as emoções que esse
sentimento o levava a experimentar, pois a doçura da paixão a tal convidava.
Mas
Amor, receoso de que a sua mensagem, ao dar a conhecer os enganos da paixão,
servisse para precaver os leitores avisados, desvaneceu de súbito as suas
capacidades poéticas, incutindo-lhe apenas pesar. Note-se que a transição da
primeira para a segunda quadra é realizada por meio da conjunção adversativa “porém”,
o que faz com que os conteúdos das duas estrofes pareçam opostos,
designadamente através do recurso ao par antitético “Fortuna / Amor”, entidades
personificadas.
Após
a descrição desta fase pretérita, o emissor lírico, de novo transformado em “autor
implicado”, dirige um dramático apelo nos dois tercetos aos leitores que são os
destinatários dos seus poemas. Com a apóstrofe pronominal “vós”, interpela
exclamativamente quantos são obrigados por Amor a sujeitarem-se a um desejo
afectivo, e lêem, num breve livro, os acidentes tão vários que a paixão pode
implicar. Assim acontece porque esses versos não apresentam sentimentos
fingidos, mas vivências autênticas, e portanto os leitores obterão, segundo
experimentarem amor, a compreensão das emoções que neles ficam encerradas.
Em
termos construtivos, “Em quanto quis Fortuna que tivesse” mostra uma nítida
estrutura bipartida. Desta feita, o tempo verbal predominante nas quadras é o
pretérito perfeito do indicativo (“quis”, “fez” e “escureceu-me”), ao passo que
os tempos utilizados nos tercetos são o presente do indicativo (“obriga” e “são”)
e o futuro do conjuntivo (“lerdes” e “tiverdes”), para além do imperativo (“sabei”)
e do futuro do indicativo (“tereis”). O soneto apresenta nas quadras, de modo
explícito, um tom essencialmente discursivo. Nos tercetos sobressaem, contudo,
fórmulas de apelação enfática, como a apóstrofe colectiva expressa
exclamativamente no primeiro terceto e, além disso, a referida forma verbal
imperativa do terceto seguinte.
Tematicamente,
“Em quanto quis Fortuna que tivessse” é um autêntico “soneto-prólogo” (ou
soneto “in limine”), pois contém a maioria dos requisitos que singularizam esse
peculiar subgénero da poesia petrarquista. Entre eles, há que mencionar a
utilização preferencial da forma do soneto, o seu posicionamento em lugar de
destaque relativamente ao conjunto de composições de que faz parte, a invocação
do leitor como companheiro nos tormentos que Amor causa, mais do que como juiz
literário, e, enfim, o desejo de servir de exemplo dissuasor para outros
possíveis amantes.
Com
efeito, “Em quanto quis Fortuna que tivessse” parece escrito depois de
decorrida uma experiência sentimental, a fim de figurar como preâmbulo de uma colecção
de composições com assunto amoroso previamente criada. Pode-se pensar,
inclusivamente, que tenha sido concebido para servir de início a uma eventual
colecção de poemas dispostos numa dada ordem, como um “canzoniere” à maneira
petrarquista, que reflectisse o processo amoroso vivido pelo emissor lírico.
Com
certeza, “Em quanto quis Fortuna que tivessse” não é o único soneto-prólogo
escrito por Camões. No seu comentário, Faria e Sousa põe em relevo a natureza análoga
de “Eu cantarei do Amor tão docemente”:
- El soneto I [Em quanto quis Fortuna que tivessse] fue proposición en general hablando con el auditorio; este [Eu cantarei do Amor tão docemente] lo es en particular de los efectos que resultarán de su canto, y de cuál sea el sujeto de él con quien empieza a hablar. (Camões 1685)
De facto, esses dois sonetos ocupam a primeira e a segunda posição nas “Rhythmas”
de 1595, privilégio de que vão continuar a gozar em quase todas as ulteriores
edições camonianas». In Xosé Manuel Dasilva. Comentário a um soneto (autêntico)
de Camões, ‘Em quanto quis Fortuna que tivesse, revista Limite nº 5, Universidade
de Vigo 2011.
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