Cortesia de wikipedia
«Dada uma tão grande escassez de recursos, como se nos
dicionários da língua não existissem outras palavras, nem no cérebro desses escritores
outras ideias, pergunta-se hoje como puderam eles entreter com os produtos da
sua literatura umas poucas de gerações, emocionando-as a seu bel-prazer,
seduzindo-as e dominando-lhes os espíritos?
É que eles eram os escritores do seu tempo; e seria
preciso que à gente de hoje fosse possível fazer viver de algum modo a mesma
vida daquele tempo, para que ela os amasse deveras.
Não era um segredo deles, dos que escreviam: era um
segredo que estava com quem os lia. As ambições não eram tantas como são hoje, e
esta de toda a gente, ou quase toda, querer que a tomem por «espírito superior»
não se manifestava senão em casos de excepção, que logo cabiam no ridículo, e
passavam a ser pratinho de muito apreço para os que tinham o juízo no seu lugar.
A mediania não era coisa que envergonhasse ninguém.
Quem devia estar alto, lá estava; quem devia ficar em baixo, não ia para cima ;
e aqueles que, não podendo chegar muito acima, conseguiam não ficar ao rés da
terra, contentavam-se risonhamente com a sua sorte, e parecia não haver quem
lhes passasse o pé adiante em ventura comedida.
Agora não há nada disso. Todos querem ser, em tudo,
mais que os outros. Todos querem poder mais do que podem, e parecer mais do que
são. Ser ambicioso nem sempre é mau; mas a ambição assim é desvario. A
literatura desvairou também, como não podia deixar de ser, para estar com o seu
tempo; e aquela que, num dado momento, foi espelho da vida simples e razoável de
então, passou de moda.
A sobriedade do português
é uma coisa que não sofre discussão. É indiscutível. Outros povos têm sido, ou
são, ou hão-de vir a ser vítimas dos seus exageros: o espanhol arruína o
estômago com o colorau; a bambochata, ao francês, amolece a espinha; o gin
estropia o anglo-saxão; e quem ao china tire da boca a boquilha do ópio, tira-lhe
tudo.
Experimentem, porém, o
português na provação de todas as mínguas. Deixem-no ficar uma noite inteira ao
relento, acocorado contra uma esquina, em Dezembro, sem manta nem capote em que
se embrulhe, e ele passará aí, e assim, a noite, tão bem como a teria passado
num quarto do Bragança, com as janelas sem trinchas, edredons de penas, e entre
bons lençóis. Toda a noite levará a sonhar que se está no fim do Verão, e ele a
passa-lo em Sintra, à sombra de árvores, ouvindo o murmúrio de cascatas. E o
que ele em sonhos, julgar ser o murmúrio de cascatas, será o beiral do telhado
a pingar-lhe em cima...
Aguardem o ano que vai
mau para as vinhas, deixem passar a vindima, a faina do lagar, a pisa, a trasfega,
e vejam a cara que ele faz quando, entrando jovialíssimo na taberna que
primeiro pôs o ramo de videira à porta em sinal de vinho novo, e ao mandar
saltar meio litro, lhe observa o taberneiro que está a quatro vinténs o litro.
Olhem bem para ele: nem pestaneja. Se jovial entrou, jovial se fica. Está o
vinho mais caro? Melhor, que se bebe menos. E em vez de meio litro, dois decilitros
o contentam.
Façam monopólio da
carne, consintam ao cortador que em cada quilo do acém, da alcatra ou do pojadouro,
impinja ao magro freguês trezentas gramas de osso, e pelo peso lhe leve dezasseis
vinténs ou dezoito. Ele nem pegará num peso de dois quilos de cima do balcão
para o pespegar na testa ao cortador, nem sequer ao cortador chamará ladrão.
Apenas delibera não
comer mais carne, e se outra vez tem de tornar a fazer caminho por ali, passa
de largo, receando sempre que o homem do talho lhe saia de lá armado de choupa
com que o abata, para depois o cortar em pedaços, pendurá-lo nas fateixas e
vendê-lo por vaca!
Não se pode comer carne? Come-se peixe. E se ao peixe, em muitos dias,
só os ricos chegam, come-se hortaliça, feijão, batatas. Levem as coisas a ponto
de o porem a pão e laranja, que é a expressão da última miséria de boca ainda
mesmo estando o pão caro como está e só nos deixarem os exportadores da fruta o
rebotalho da laranja. Ele se deixará por a pão e laranja, não direi já sem um
certo esmorecimento, ou falha de alegria, o que é dado a barriga vazia, mas sem
por isso rememorar a revolta do Vinagre». In Alfredo de Mesquita, Alfacinhas,
Parceria de António Maria Pereira, Livraria Editora, Lisboa, 1910, Library
University of Toronto, 1968, PQ 9261 M47A4.
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