terça-feira, 12 de junho de 2012

Alfacinhas. Alfredo Mesquita. «Olhem bem para ele: nem pestaneja. Se jovial entrou, jovial se fica. Está o vinho e a sardinha mais caro? Melhor, que se bebe menos. E em vez de meio litro, dois decilitros o contentam»



Cortesia de wikipedia

«Dada uma tão grande escassez de recursos, como se nos dicionários da língua não existissem outras palavras, nem no cérebro desses escritores outras ideias, pergunta-se hoje como puderam eles entreter com os produtos da sua literatura umas poucas de gerações, emocionando-as a seu bel-prazer, seduzindo-as e dominando-lhes os espíritos?
É que eles eram os escritores do seu tempo; e seria preciso que à gente de hoje fosse possível fazer viver de algum modo a mesma vida daquele tempo, para que ela os amasse deveras.
Não era um segredo deles, dos que escreviam: era um segredo que estava com quem os lia. As ambições não eram tantas como são hoje, e esta de toda a gente, ou quase toda, querer que a tomem por «espírito superior» não se manifestava senão em casos de excepção, que logo cabiam no ridículo, e passavam a ser pratinho de muito apreço para os que tinham o juízo no seu lugar.
A mediania não era coisa que envergonhasse ninguém. Quem devia estar alto, lá estava; quem devia ficar em baixo, não ia para cima ; e aqueles que, não podendo chegar muito acima, conseguiam não ficar ao rés da terra, contentavam-se risonhamente com a sua sorte, e parecia não haver quem lhes passasse o pé adiante em ventura comedida.
Agora não há nada disso. Todos querem ser, em tudo, mais que os outros. Todos querem poder mais do que podem, e parecer mais do que são. Ser ambicioso nem sempre é mau; mas a ambição assim é desvario. A literatura desvairou também, como não podia deixar de ser, para estar com o seu tempo; e aquela que, num dado momento, foi espelho da vida simples e razoável de então, passou de moda.

A sobriedade do português é uma coisa que não sofre discussão. É indiscutível. Outros povos têm sido, ou são, ou hão-de vir a ser vítimas dos seus exageros: o espanhol arruína o estômago com o colorau; a bambochata, ao francês, amolece a espinha; o gin estropia o anglo-saxão; e quem ao china tire da boca a boquilha do ópio, tira-lhe tudo.
Experimentem, porém, o português na provação de todas as mínguas. Deixem-no ficar uma noite inteira ao relento, acocorado contra uma esquina, em Dezembro, sem manta nem capote em que se embrulhe, e ele passará aí, e assim, a noite, tão bem como a teria passado num quarto do Bragança, com as janelas sem trinchas, edredons de penas, e entre bons lençóis. Toda a noite levará a sonhar que se está no fim do Verão, e ele a passa-lo em Sintra, à sombra de árvores, ouvindo o murmúrio de cascatas. E o que ele em sonhos, julgar ser o murmúrio de cascatas, será o beiral do telhado a pingar-lhe em cima...
Aguardem o ano que vai mau para as vinhas, deixem passar a vindima, a faina do lagar, a pisa, a trasfega, e vejam a cara que ele faz quando, entrando jovialíssimo na taberna que primeiro pôs o ramo de videira à porta em sinal de vinho novo, e ao mandar saltar meio litro, lhe observa o taberneiro que está a quatro vinténs o litro. Olhem bem para ele: nem pestaneja. Se jovial entrou, jovial se fica. Está o vinho mais caro? Melhor, que se bebe menos. E em vez de meio litro, dois decilitros o contentam.
Façam monopólio da carne, consintam ao cortador que em cada quilo do acém, da alcatra ou do pojadouro, impinja ao magro freguês trezentas gramas de osso, e pelo peso lhe leve dezasseis vinténs ou dezoito. Ele nem pegará num peso de dois quilos de cima do balcão para o pespegar na testa ao cortador, nem sequer ao cortador chamará ladrão.
Apenas delibera não comer mais carne, e se outra vez tem de tornar a fazer caminho por ali, passa de largo, receando sempre que o homem do talho lhe saia de lá armado de choupa com que o abata, para depois o cortar em pedaços, pendurá-lo nas fateixas e vendê-lo por vaca!
Não se pode comer carne? Come-se peixe. E se ao peixe, em muitos dias, só os ricos chegam, come-se hortaliça, feijão, batatas. Levem as coisas a ponto de o porem a pão e laranja, que é a expressão da última miséria de boca ainda mesmo estando o pão caro como está e só nos deixarem os exportadores da fruta o rebotalho da laranja. Ele se deixará por a pão e laranja, não direi já sem um certo esmorecimento, ou falha de alegria, o que é dado a barriga vazia, mas sem por isso rememorar a revolta do Vinagre». In Alfredo de Mesquita, Alfacinhas, Parceria de António Maria Pereira, Livraria Editora, Lisboa, 1910, Library University of Toronto, 1968, PQ 9261 M47A4.

Cortesia de University of Toronto/JDACT