jdact
NOTA: Texto na versão original
A Infanta D. Maria
«Já ouvimos as informações do embaixador castelhano Sancho
de Cordova ao soberano. Este recorria continuamente ao seu preclaro juizo e à
sua illustração. Vive em intimo convivio com as Musas, cunt Musis rationem
stadiorum habet conjunctissimam, escrevia em 1546 sua preceptora particular, Luisa
Sigea, fallando d'ella ao Papa Paulo III. Em outra occasião, a mesma designa-a
como primaz em humanidades, erudição e virtudes. Com haver-se inclinado ás
letras, as honra Vossa Alteza e a todos os seus professores, lhe dizia um
ancião veneravel, o austero Navarro, Martim de Azpilcueta. Realmente distincta
pelo engenho e força de espirito a proclamava Jeronymo Osorio, o grande Bispo de
Silves: ingenio et animi magnitudine excelluit. Como eruditissima foi apostrophada
repetidas vezes por André de Resende e Ignacio de Moraes. ‘De tal modo te
dedicaste ao estudo que não só de passagem e pela rama, como é praxe entre
damas, mas a fundo e de coração te entregaste ao convivio das Musas’, assim
lhe fallava outro humanista notavel, da amizade de Cortereal, ao dedicar-lhe as
obras de um sabio. Entre as eruditas do nosso tempo occupa logar honroso: é Vaseu,
auctor da Chronica Hispanica quem o assenta e divulga “urbi et orbi”. Unica
pela prudencia e conhecimento de todos os assumptos, “prudentia et omnium rerum
cognitione tamquam fhenix única”. Sabedora de tudo!... Mas com este dicto, lá
estamos novamente no campo das hyperboles, que tento evitar.
Fundando-me em taes e em outros elogios singelos e sinceros de
varões e damas que a conheceram de perto, nas obras notaveis, scientificas e
amenas, que lhe offereceram, e nas poucas amostras do seu estylo cuidado que
perduram, julgo que pela leitura reiterada de trechos escolhidos de litteratura
sacra e profana, antiga e moderna, em linguas mortas e vivas, adquiriu uma fina
percepção da arte: respeito pelas letras; noções muito variadas; um peculio
basto de historietas e dictos classicosi plena comprehensão da lingua latina a
ponto de entender tanto os discursos recitados por oradores como as eglogas, comedias
e tragedias, representadas nos collegios de Coimbra e Evora; facilidade
sufficiente para responder de improviso a embaixadores ou legados, e para
redigir cartas de agradecimento e congratulações a soberanos estrangeiros. Do
grego, os rudimentos, afim de perceber a terminologia scientifica e a decifrar
e verificar citações no Novo Testamento, ou allusões como as de Hollanda, na
Iliada e Odysseia.
E francamente, não é pouco. Merecia applausos. Constituia caso
inteiramente novo entre princesas nascidas em Portugal. Ainda assim, a
interpretação de João de Barros comprehende-se e não carece de todo o
fundamento. Portugal havia adoptado tão tarde a reforma da educação no sentido
da Renascença que a reacção seguiu a acção muito de perto, antes de o saber
classico haver filtrado das camadas superiores para as inferiores, espalhando sementes
para colheita futura. Na propria vida da Infanta, mais ainda, no proprio
reinado de João III e D. Catharina, a catastrophe estalou, e deu rumo diverso
tanto ao ensino publico e particular, como ás leituras e praticas da Infanta.
Naquelle sentido orthodoxamente catholico, bem se vê, que procreou a “austera,
apagada à vil tristeza” que o Vergilio lusitano lamentava, e já, fôra apontado
como caracteristico nefasto de todos os reinos governados por estultos e monges,
“regnum monachorum et stultorum” pelo sabio de Rotterdam e pelo grande poeta
comico português».
In Carolina Michaelis de
Vasconcelos, Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas Damas, edição
fac-similada, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1994, ISBN 972-565-198-7.
Cortesia de Biblioteca Nacional/JDACT