jdact
Antero ou o socialismo como utopia
«Os homens de alta exigência ética e mística, e Antero foi um deles, são
sempre um pouco arcaicos. Nada espanta que as suas relações humanas com os seus
camaradas militantes se tenham ressentido dessa espécie de ‘rigidez’ íntima,
onde, sem dúvida, além de um traço de carácter, se reflectiria também a sua
condição social. A contradição, se merece tal nome, não incide sobre o ideal do
Socialismo, nem, a bem dizer, sobre o nível de consciência com que podia ser
compreendido e traduzido em actos pelos seus camaradas proletários ou de meios
modestos. Se existe, incide sobre a essência mesma da sua visão da Realidade,
sobre a sua filosofia.
A maneira como Antero exemplificou essa contradição é, específica,
tanto pela inserção social e o estilo de vida do autor dos “Sonetos” como pelo
radicalismo dessa filosofia, impregnada de pessimismo, a partir de dada altura
do seu percurso. Deve acrescentar-se que, durante os dois decénios em que ele
tentou ligar o seu destino ao do movimento operário nascente, havia na
realidade social e intelectual portuguesa mais do que era preciso para alimentar
a inclinação profunda de Antero para o pessimismo. O abismo era quase
intransponível entre o mundo social ao qual Antero pertencia pelas suas
origens, tradições e educação e o mundo operário apenas saído da sua ganga
rural. O único elo efectivo e afectivo entre ambos, o da religião, ou pelo
menos da prática dita religiosa, quebrara-se abstracta, mas fundamente, no espírito
de Antero. Com o tempo, Antero converteu-se no sujeito de um processo de
automarginalização, de um suicídio vivido de olhos abertos, antecipando sobre o
gesto final. Era o preço que devia pagar, sem dúvida, um aristocrata
provincial, mentalmente em situação de ruptura com os valores não só da sua
classe de origem como da quase totalidade da classe letrada, e intelectualmente
dotado dos dons especulativos mais raros, para poder converter-se no “irmão”
dos pioneiros efectivos, bem pouco numerosos, do militantismo português, de
carácter revolucionário no nosso século XIX.
Diz-se que a frequentação desse meio militante lhe provocava um certo
mal-estar. Se é exacto, esse “mal-estar”, bem compreendido, só o honra. Jovem,
Antero fora impulsivo e, por vezes, demagogo. O homem adulto, instruído pela
vida e pelo sofrimento, não podia enganar-se a si mesmo. A sua diferença não
era o fruto ocasional da sua condição de cultura e de classe. O conteúdo autêntico
da sua dolorosa ‘diferença’ consistia no sentimento de “solidão ontológica e
moral” que Antero experimentava no mesmo, ou, em maior grau, no meio da alta roda
dos seus amigos, no tempo em que a frequentava. Para esse clã, privilegiado da
fortuna, da posição ou da inteligência, Antero era ao mesmo tempo ‘o santo’, o ‘sábio’
e a insuportável má consciência. É evidente que às contradições históricas do
sonho socialista dos anos 80 e aos seus obstáculos normais Antero acrescentou as
suas próprias e irredutíveis contradições pessoais. Mas, ao contrário de
outros, assumiu-as intelectual e vitalmente até morrer delas, nelas e por causa
delas. A posteridade reteve sobretudo o seu sofrimento espiritual e orgânico,
assim como o fim trágico a que um e outro conduziram, um pouco como uma
desculpa ou um remorso tardio. Antero escapava, nessa perspectiva, ao seu destino
de ‘suicidado da sociedade’ mais conforme com uma leitura adequada dele.
Todavia, no sentido imediato da palavra, não se pode dizer que ele tenha sido
um “mártir” do Socialismo. Quando muito foi-o da ideia do Socialismo como
revolução social, moral e de consciência. Mas era esse, talvez, o autêntico
martírio.
Em Portugal, na sua época, de aparente (mas também realíssima)
liberdade de expressão, à maneira europeia, um intelectual da sua condição e do
seu génio estava condenado à “consideração” mítica ou distraída. Realidade objectivamente
“utópica”, o projecto socialista, entre nós, não podia adquirir os seus
pergaminhos de nobreza senão encarnado e vivido intelectualmente por um homem capaz
de lhe insuflar todo o peso do dilaceramento abrupto que ele significava em
relação a toda a nossa tradição política, moral e religiosa. Desse
dilaceramento, o coração, a alma e o espírito de Antero eram justamente o lugar
supremo. Antero quis beber o vinho novo da Revolução na antiga taça de uma Fé que
todo o seu século, e ele mesmo, ajudara
a quebrar. Ou, inversamente, acreditou que a antiga aspiração encontrava o seu cumprimento
nos combates novos sob a bandeira da justiça social. Alma de apóstolo mais que
génio revolucionário, pôde comunicar, contudo, aos maiores espíritos do seu
tempo, a um Eça de Queirós, a um Oliveira Martins, a paixão que nenhuma ironia,
nenhuma fraqueza mundana puderam de todo apagar.
Fracasso da utopia? Em termos de destino vital, talvez. Antero sucumbiu
ao poder das trevas, mas o sonho da sua adolescência, nunca renegado, sublevou
uma geração de artistas e revolucionários da sensibilidade que ainda hoje nos
acenam e nos iluminam. Um só exemplo fala por ela: Juliana. A mais fascinante
das personagens de Eça de Queirós, plantada na berma e no centro do mundo
inconsciente da burguesia do nosso século XIX como o arquétipo de uma classe
humilhada incapaz de levar a sua revolta mais além que a consciência imediata, só
podia nascer à sombra de um desses mediadores da revolta em “espírito”, esses
cruzados da utopia que são os intelectuais dignos desse nome.
E quem, em Portugal, o foi, mais que Antero?»
In Eduardo Lourenço, Antero ou a Noite Intacta, Gradiva, 2007, ISBN
978-989-616-181-1.
Cortesia de Gradiva/JDACT