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Apontamentos sobre a Comida e a Bebida do Campesinato Coimbrão em Tempos
Medievos
«O pão nosso de cada dia, ontem como hoje, não é igual para todos.
Afirmação banal que não deixa de ser insofismavelmente uma verdade. Na
sociedade de ordens os “laboratores” trabalhavam para sustento dos que rezavam
pela comunidade, os “oratores”, ou dos que pegavam em armas para a sua defesa,
os “bellatores”. Com o cansaço do seu corpo e suor do seu rosto ganhavam o pão alheio
e era esse “labor-dolor” que lhes assegurava a salvação. A justificação ética
da sua função na sociedade servia igualmente os interesses da economia feudal
que vive e se estrutura em função da terra e dos seus rendimentos. Os
camponeses lavram e semeiam as terras dos senhores e entregam-lhes, em rendas e
foros, o pão e o vinho que do seu trabalho brotaram. O quadro é típico dos
tempos medievais, mas perdura durante todo o Antigo Regime, ou mesmo mais além.
O mundo rural à volta de Coimbra não foge a estes parâmetros. Fortes
potentados eclesiásticos citadinos como, entre outros, Santa Cruz e a Sé,
promoveram e enquadraram a colonização e arroteamento destas terras do Mondego
que se retalharam em múltiplos senhorios de abadengo. E ao longo dos séculos
outros institutos religiosos ou membros da nobreza, a par de ricos vizinhos da
cidade e vilas, foram tutelando o campo e os seus homens. O campesinato
coimbrão não se define, assim, por aquela elite de homens-bons dos concelhos
rurais, alguns cavaleiros-vilãos, que têm alódios ou disponibilidade para
arrendar os grandes domínios senhoriais. A tónica é dada pela massa de
lavradores, seareiros e cavões que amanham casais ou terras dos senhores e lhes
entregam anualmente uma quota-parte da sua colheita e ainda alguns outros
géneros, animais ou dinheiro, a título de foros ou direitos eclesiásticos.
Eram estes, na verdade, os camponeses-produtores que cultivavam o
"pão" que os senhores arrecadavam, permitindo-lhes que o mesmo se
transformasse em carne, pescado ou iguarias, enquanto na sua mesa ele se
tornava apenas em pão de segunda. O cereal e o vinho constituíam, pois, a
essência da dieta alimentar dos homens do campo. Mas, como diz Louis Stouff, a
hierarquia das pessoas define-se pela cor do seu pão e a qualidade da sua
bebida. O pão do camponês é escuro, no geral de mistura, meado, terçado ou
quartado, conforme o número de cereais que o compõem. O pão alvo, só de trigo,
era mimo de ricos ou guloseima de pobres em dias festivos. Grande variedade de
pão saía de um forno da cidade, situado na freguesia de Santa Justa, onde a forneira
cozia pão alvo e de segunda, tanto grandes como pequenos e ainda
"rellam" (talvez pão de rala, ou seja, de certos fragmentos de trigo)
e "massamilho" (certamente pão de milho, equivalente à boroa que,
aliás, também se conhecia). À volta da cidade, nas boas terras do campo, cultivava-se,
muitas vezes rotativamente, o trigo (mourisco, espécie de trigo duro, ou o
galego e tremès, trigos moles) e o milho e nas terras do monte o centeio e a cevada,
dispondo-se, assim, na região, de todos os cereais panificáveis.
O homem do campo consumia, no dia-a-dia, grandes porções de cereal, e
por isso fabricava, desde logo, pães grandes, que os senhores cobiçavam e
exigiam nos foros que arrancavam aos lavradores. O mosteiro de Celas, num
aforamento de um casal em Miranda, estipulava, entre os foros, "pães
grandes de calo". A colegiada de São Salvador contendia com os lavradores
de um casal, em Eiras, pelo facto de as regueifas, que constituíam o foro da
pedida, serem pequenas e determinava que de um alqueire, pela medida velha
coimbrã, de farinha de trigo mourisco peneirada pela antemão, fizessem 12
regueifas (portanto, com cerca de 833 g). Mais explícito é ainda o mosteiro
lorbanense, que reclama de dois moleiros, em cada ano, 4 pães alvos, bons e
grandes como aqueles que faziam em suas casas para comer. Só que tais pães não
seriam de trigo, mas de mistura.
Tão imprescindível como o pão era o vinho, que abundava nesta área. Não
havia casa que não se rodeasse de vinha entre as culturas circundantes.
Entretanto cultivava-se maciçamente no aro citadino, ombreando com a oliveira,
nas encostas dos povoados do Mondego e ainda na fachada marítima desta região.
Conhecia-se o vinho vermelho e branco, se bem que, para o século XVIII, Manuel
Dias Baptista afirme que "nesta Comarca a maior parte das uvas são brancas,
de sorte que as negras apenas bastão para tingir o mosto branco" e talvez
por esta razão as duas variedades de vinhas se cultivassem indistintamente nos
terrenos. O vinho era bebido simples, mas também misturado com água, duas
partes de vinho e uma de água, para os mais afortunados, ou mesmo metade de
vinho e metade de água. Despendia-se muito vinho no acompanhamento das
refeições ou apenas em matar a sede, pois "beber" não tinha outro
sentido que não beber vinho». In Maria Helena Cruz Coelho, Homens, Espaços e
Pobres, Séculos XI-XVI, Notas do Viver Social, Livros Horizonte, 1990, ISBN
972-24-0756-2.
Cortesia de L. Horizonte/JDACT