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«Para este
comportamento, poderá ter contribuído o próprio Tribunal do Santo Ofício
(maldito), pois, se por um lado vigiava, castigava e catequizava os
criptojudaizantes, por outro, permitiu, mediante a publicação dos éditos, da
leitura dos sermões da fé e dos autos-da-fé, manter viva, junto dos
cristãos-velhos, a imagem do outro e da sua diferença e, entre os
cristãos-novos, a ideia de pertença a um grupo com uma cultura específica.
O facto de,
eventualmente, essa cultura lhes conferir uma identidade própria é algo que
talvez mereça ser discutido. O termo identidade reclama, como algo de fundamental,
a unidade interna, a qual deve ser vista, não como o resultado de um natural,
inevitável e primordial todo, mas, pelo contrário, de um processo de fechamento,
que é construído e considerado como necessário por cada identidade. Além disso,
a identidade deve ser entendida como o resultado de uma complexa série de
dinâmicas sociais não surgindo espontaneamente mas sendo, sim, aprendida e
reaprendida ao longo dos tempos o que tem custos, visto que exige a constante reordenação
da memória, ou seja de conhecimentos que são mantidos e re-criados.
Ora foi precisamente a
busca dessa identidade, entendida no seu sentido mais amplo, que suscitou o
nosso interesse e nos levou a indagar em que medida a mesma manteve os seus
traços fundamentais, os perdeu ou reconstruiu de acordo com uma nova realidade
Seiscentista. Procurámos assim na presente dissertação encontrar resposta a
algumas interrogações que, nos últimos anos, esta questão nos tem suscitado,
entre elas a de tentar compreender quem eram, afinal, estes homens e mulheres
que, em pleno século XVII, ainda continuavam, muitos deles, a ostentar a designação
de cristãos-novos e o que os identificava como tal. Porém, a interacção
que criaram com a sociedade deve também ser motivo de reflexão, pois há que
procurar entender se os cristãos-novos continuavam, ou não, a constituir uma
“franja” autónoma da sociedade Seiscentista e qual o papel que desempenharam na
construção do Estado Moderno, nomeadamente nos espaços regionais. Finalmente, o
modo como a sociedade, em particular o Tribunal do Santo Ofício (maldito),
reagiu à presença no seu seio deste “corpo”, não poderia igualmente ser
negligenciada no nosso estudo, visto que era, essencialmente, sobre os cristãos-novos
que a Inquisição (maldita) fazia incidir a sua acção de controlo.
Embora conscientes das
dificuldades com que nos iríamos deparar, procurámos obter resposta a esta
problemática centrando a nossa atenção na comunidade formada pelos
cristãos-novos residentes no núcleo urbano de Elvas durante o reinado de D.
João IV.
NOTA: Um dos principais
problemas com que nos confrontámos foi a falta de estudos sobre a presença dos cristãos-novos
na sociedade Seiscentista. Além disso, os que existem apresentam objectivos e metodologias
bem diversas daqueles que nortearam o nosso trabalho. Cf. João dos Santos
Ramalho Cosme, A vila de Mourão na Inquisição de Évora (1552-1785):
contributo para o seu estudo, Mourão, Câmara Municipal de Mourão, 1988;
Idem, “Olivença na inquisição de Évora (1559-1782)” in Revista de Estudios
Extremeños, Badajoz, nº II, tomo XLVI, 1990. O Autor retomando, em parte,
os dois trabalhos atrás mencionados alargou o seu âmbito de análise e fez
incidir o seu estudo sobre os elementos cristãos-novos estabelecidos não apenas
em Mourão e Olivença, mas também nos núcleos populacionais de Moura e Serpa.
Cf. O Além-Guadiana português, da Restauração ao Tratado de Utreque
(1640-1715): política, sociedade, economia e cultura, tese de doutoramento
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1994, vol. I. Berta
Afonso, “Subsídios para o estudo da comunidade judaica de Mogadouro no século
XVII: o processo de Maria Brandoa” in Brigantia, Bragança, vol. V, nº
2-3-4, 1985, “Para o estudo dos judeus no nordeste transmontano: A comunidade
judaica de Mogadouro nos meados do século XVII” in Brigantia, Bragança,
vol. IX, nº 1, 1989. Informações de relevo sobre esta matéria podem, ainda, ser
colhidas em trabalhos como os de Joaquim Romero Magalhães, O Algarve
económico (1600-1773), Lisboa, Ed. Estampa, 1988, ou Francisco Ribeiro da
Silva, O Porto e o seu termo (1580-1640): Os homens, as instituições e o
poder, vol. I, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1988. Refiram-se, ainda,
os trabalhos de António Borges Coelho, Inquisição de Évora, Lisboa, Caminho,
1987, 2 vols. e de Elvira Cunha de Azevedo Mea , A Inquisição de Coimbra no
século XVI: A Instituição, os Homens e a Sociedade, Porto, Fund. Engº
António de Almeida, 1997. A historiografia espanhola tem-se, essencialmente,
debruçado sobre as comunidades ou famílias judaicas e conversas no século XV.
A razão que nos levou a
circunscrever a nossa análise ao referido espaço geográfico e a restringi-la
aos primeiros dezasseis anos do período da Restauração, prendeu-se com o facto
de, ao procedermos a uma análise das informações contidas nas “cadernetas” da
Inquisição de Évora, na Torre do Tombo, nos termos confrontado com uma
realidade surpreendente. Foi-nos possível constatar que, durante o reinado de D.
João IV, a Inquisição (maldita) de Évora, tendo em conta o número de processos
instaurados, parece ter exercido uma maior pressão sobre os cristãos-novos
elvenses, se comparada com a actuação da referida Inquisição (maldita) relativamente
a outros núcleos populacionais situados na área, actualmente denominada Alto
Alentejo, que se encontravam também sob a sua alçada». In Maria do Carmo
Teixeira Pinto Os Cristãos-Novos de Elvas no reinado de D. João IV. Heróis ou
Anti-Heróis?, Dissertação de
Doutoramento em História, Universidade Aberta, Lisboa, 2003.
Cortesia de U.
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