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«Correntemente considerava-se que o indivíduo se afirma pela sua
consciência, a sua personalidade consiste no conhecimento que de si próprio
tem, em aperceber-se a si mesmo, a todas as suas reacções e ao conjunto da sua
conduta. O individual seria, por conseguinte, o consciente. Um psicólogo
formado na escola psicanalítica, o médico Charles Blondel, inverteu a
interpretação: a consciência traduz muito mais uma realidade social e colectiva
do que uma realidade individual. O estudo dos doentes mentais mostraria que o
incomunicável, aquilo que é autenticamente individual, se situa no inconsciente
e no subconsciente, nas profundezas do “eu”. Os estados patológicos caracterizam-se
pela impossibilidade de comunicação com a sociedade; o alienado seria, segundo
Blondel, essencialmente um isolado. Sendo assim, teríamos a identificação da
consciência com o social e da inconsciência com o individual, com o
profundamente subjectivo. Ideia fecunda, e que continua a merecer que a
utilizemos nas nossas explorações.
O etnólogo Lévi-Strauss voltou esta ideia do avesso: o social, longe de
ser o consciente, seria precisamente o inconsciente. Num sentido que não se
confunde com a posição do médico psicólogo Jung, convicto proponente da ideia
de inconsciente colectivo. Jung chamou a atenção para o conjunto de condutas e
situações da personalidade que escapam à consciência e que, longe de traduzirem
uma posição individual, são como que aluviões que se foram depositando através
dos séculos; esse inconsciente seria imanente às diferentes pessoas que compõem
a sociedade. Esta interpretação esbarra todavia com algumas dificuldades
metodológicas, a principal sendo a da transmissão dos caracteres adquiridos.
Esta transmissão é uma hipótese, aliás também necessária à teoria da evolução
de Darwin, que não está descartada mas também não está provada, e diz respeito
a caracteres biológicos, físico-químicos, e não a traços psíquicos. Parece
extremamente difícil admitir que a evolução pretérita da humanidade foi
depositando no espírito de cada um de nós camadas abaixo da consciência, para
além do apercebermo-nos de nós próprios; as nossas condutas de hoje teriam inscritas
realidades psíquicas do passado, mesmo de eras longínquas, por isso Jung lhes
chamou “paleopsique”, quer dizer, psique primitiva ou arcaica, que teria
sobrevivido mau grado as eras. Mas o problema é de extrema complexidade, porque
não há dúvida de que encontramos nas sociedades do nosso tempo, ou pelo menos
de há algum tempo atrás, na psicologia de diferentes grupos sociais, por
exemplo na literatura popular, o que parecem ser sobrevivências de épocas passadas,
condutas que se diria poderem remontar até ao paleolítico; seja como for,
pertenceriam a épocas históricas, umas distantes, outras próximas.
Considere-se a posição de Jung ou a posição muito mais matizada de
Lévi-Strauss, o que importa é reter que a existência social, não se confundindo
com a consciência social, se estratifica em níveis de profundidade, que vão
desde o consciente, através do subconsciente até ao inconsciente tanto
individual como colectivo.
Não há, ao contrário do que pretendia Blondel, a dupla correspondência
entre consciência e sociedade, inconsciente e individualidade, nem a dupla
correspondência oposta, sociedade e inconsciente, pessoa e consciência, como
defendeu Lévi-Strauss. Há, sim, nos diferentes níveis da personalidade, uma combinação,
uma conexão recíproca e em transformação permanente entre individual e social.
Em qualquer dos casos, temos um ponto de partida: a realidade objectiva das relações
sociais. Conquanto imanentes às pessoas, transcendem-nas como algo que se lhes
impõe, que não podem modificar a seu belo talante, e de que só têm uma
consciência fragmentáría, frequentemente deformada. Mas se a sociedade é uma
realidade autónoma, que ao indivíduo se contrapõe, não é evidentemente de natureza
material, não o é no sentido da interpretação grosseira do conceito de” coisa”
contra o qual reagiu Durkheim. Apresenta-se-nos como constelação de estruturas,
entidade colectiva que transcende a soma das partes de que se compõe». In
Vitorino Magalhães Godinho, Problematizar a Sociedade, Quetzal Editores, 2011,
ISBN 978-972-564-946-6.
Cortesia de Quetzal Editores/JDACT