quinta-feira, 28 de junho de 2012

Ensaios Políticos. A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História? Eduardo Lourenço. «Esse socialismo como ‘não-futuro’ seria a expressão de uma nova racionalidade, paradoxalmente requerida ou imposta pela morte ou descrédito teórico e prático daquela “racionalidade” que, desde o século XVIII e da Revolução Francesa…»



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«Subordinando o nosso encontro ao tema do "socialismo do futuro”, os camaradas que o organizam não pretenderam decerto escrever mais um capítulo de futurologia e ainda menos pensaram que tal tema pudesse ter ressonâncias de provocação. E antes de mais a nós mesmos, socialistas presentes e do presente, num contexto histórico-cultural em que a ideia e a realidade do socialismo é aludida e pensada pelo discurso dominante do ocidente como precisamente ‘sem futuro’.
É claro que se pensasse que a perspectiva socialista e o socialismo pertencem, no melhor dos casos, a uma utopia generosa, definitivamente desmentida pelas experiências históricas do nosso século que tentaram inscrevê-la na História, não estaria aqui senão para velar um cadáver invocado com tanta complacência e ardor pelas carpideiras eufóricas do liberalismo universal redivivo, pregado como a evidência de uma solução incontornável, imposta pelas novas estruturas da produção hipercapitalista.
Infelizmente, neste momento, é como “no future” que o socialismo é aludido num discurso liberal que não se apresenta apenas como mera cobertura de uma prática económica para a qual se afirma não haver alternativa, mas como “discurso cultural englobante”. Esse socialismo como ‘não-futuro’ seria a expressão de uma nova racionalidade, paradoxalmente requerida ou imposta pela morte ou descrédito teórico e prático daquela “racionalidade” que, desde o século XVIII e da Revolução Francesa, subdeterminava a visão e o discurso fundador do socialismo como a única adequada à compreensão do processo capitalista moderno e à solução das contradições que lhe seriam inerentes. É esta visão oferecida como lugar-comum e horizonte óbvio para a integração cultural da revolução económica a que assistimos, revolução que não precisa sequer de actores por ser ela própria o actor não-sujeito das transformações fulgurantes e incontestáveis do ponto de vista do fim a que se destinam, que precisa de ser examinada para que seja pensável qualquer ‘futuro’ para aquela perspectiva que o liberalismo declara morta.
É claro que este triunfalismo do discurso liberal, cujo sucesso em termos de publicidade está já contido na reiteração como evidência do seu liberalismo, é também uma certa forma de resposta, ou punição, à antiga facilidade com que o discurso socialista enterrava alegremente um ‘capitalismo’, clinicamente visado como defunto pelo que continha de contrário à ‘racionalidade’ supostamente conhecida ou decifrada, não só do processo económico moderno, mas da própria História.
Se a isso acrescentarmos que, para além da crença de ter decifrado definitivamente os mecanismos económicos para os controlar à maneira de Marx ou de outros socialistas, esse enterro podia até ser imaginado como ‘fácil’, este revivalismo liberalista tem foros de lição.
É essa lição que deve ser meditada, não apenas exorcizada pelas críticas, ainda muito imbuídas da antiga visão histórico-cultural de que a ideia socialista era o coroamento ou, pela denúncia, necessária, mas excessivamente ‘moralista’, das contradições, das falhas, dos insucessos caramente pagos desse agressivo triunfalismo liberalista, ou assim chamado.
Para imaginar o espaço que não é ainda o seu, ao menos na versão socialista que aqui nos reúne, para imaginar esse ‘futuro’ que sarcasticamente nos é apresentado no discurso liberal como ‘passado’ e passado pouco grato, é necessário hoje confrontar-nos com essa ‘realidade’, com essa evidência de um projecto liberal que não se limita apenas ao exemplo, talvez não muito probante para os europeus, da América de Reagan, mas à Inglaterra de Thatcher e, em última análise, à Europa dos ‘Doze’ onde já estamos imersos. Não é apenas com a indignação ou as encantações, nem com o mero testemunho da nossa boa-consciência socialista, que se abrirá esse futuro para o projecto que representamos». In Eduardo Lourenço, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?, Ensaios Políticos, Gradiva, 2009, ISBN 978-898-616-310-5.

Cortesia de Gradiva/JDACT